Lula tem a chance de limpar a área nas relações com o Congresso e, ao mesmo tempo, reduzir a margem de risco de impasses com o Judiciário.
Ele planeja governar “sem tentativas de exorbitar, intervir, controlar ou cooptar”. Ou seja, promete seguir a letra da Constituição, cristalina sobre a separação, independência e harmonia entre os poderes.
Tomadas pelo valor de face, as palavras sugerem um presidente eleito disposto a exorcizar assombrações do Planalto, como aquelas que pariram escândalos do mensalão, do petrolão e, sob Jair Bolsonaro, do orçamento secreto, ou paralelo.
Sobram-lhe motivos para esconjurar malfeitorias como as ocorridas entre 2003 e 2010. Justa ou injustamente, elas roubaram-lhe 580 dias de vida. Absolvido ou não nas urnas, Lula tem uma bela oportunidade de mudar maus hábitos e costumes na política nacional: basta assumir com o Congresso um compromisso real, efetivo e imediato sobre o fim da reeleição.
Desastres na história brasileira costumam derivar de crises econômicas e sociais. O da reeleição é uma exceção. É ruína produzida exclusivamente no jogo político. Há um quarto de século intoxica presidentes, governadores e prefeitos, levando-os ao delírio da permanência no poder.
O impacto é crescente nos cofres públicos. Neste ano, o custo dos projetos de reeleição do presidente, de 509 deputados federais e senadores, e de vinte governadores deve ultrapassar 200 bilhões de reais. Bolsonaro perdeu, mas 59% dos parlamentares federais e 90% dos governadores se reelegeram.
Os gastos confirmam a eleição brasileira como uma das mais caras do planeta. Numa conta de padaria, torrou-se dinheirama 55% maior que o orçamento anual da Educação. É paradoxal num país onde metade dos eleitores não terminou o ensino médio e 35% nem sequer concluíram o ciclo fundamental.
Isso equivale a 39 bilhões de dólares, ou seja, o dobro do excepcional lucro da Petrobras no ano passado. Tem a dimensão do buraco identificado pela equipe de Lula no Orçamento de 2023, o primeiro do novo governo.
“Se quiser, Lula já pode liquidar com a reeleição”
A reeleição começou a ser parida em 1994, com a redução do mandato presidencial de cinco para quatro anos. Na época, Lula reunia 40% das intenções de voto. Acabou atropelado por Fernando Henrique Cardoso, patrono da nova era na economia de um país exaurido por aguda crise inflacionária.
Com um semestre no poder, o “homem do Real” plantou a ideia do segundo mandato. Numa noite de inverno em Brasília, na terça-feira 11 de julho de 1995, viu a proposta florescer na Praça dos Três Poderes: “Assunto delicado, acho difícil por causa da cultura política brasileira e não me comprometo a ser candidato. Vejo uma vantagem: a de que assim os outros se assustam e não lançam uma candidatura desde já”. Com três dúzias de palavras, em memórias gravadas, mascarou seu pecado favorito — a vaidade.
A reeleição adornou a Constituição em 1997. Fernando Henrique precisou de 23 anos para admitir: “Historicamente foi um erro”. Ficou oito anos no poder, assim como Lula, o sucessor. Dilma Rousseff teve cinco anos, interrompida por impeachment. Bolsonaro foi contido pelo efeito de uma novidade: a insurgência eleitoral contra o atraso.
Anúncio de fim da reeleição tem sido recorrente em discursos de candidatos à Presidência. Lula disse que a liquidaria em 2002. Bolsonaro também: “O que eu pretendo, tenho conversado com o Parlamento, também, é fazer uma excelente reforma política para acabar com o instituto da reeleição, que no caso começa comigo, se eu for eleito”.
Oito dias depois, estava eleito. Quando um repórter lhe perguntou sobre o projeto para acabar com a reeleição, mudou de rumo: “A possibilidade de não concorrer à reeleição é se conseguir fazer um acordo para aprovar a reforma política. Não é apenas ‘eu não vou concorrer à reeleição’”.
Lula recauchutou a jura de duas décadas atrás com o argumento da aposentadoria em 2026: “Daqui a quatro anos, a gente vai ter gente nova disputando eleições. Vai ter gente nova sendo candidato a presidente. O que eu quero é deixar o país preparado”.
Já pode escolher o dia para pagar a promessa. Basta telefonar ao senador Rodrigo Pacheco e apoiar a votação imediata da emenda constitucional que há meses adormece na mesa da presidência do Senado. Se preferir, pode anunciar um projeto e enviá-lo ao Congresso logo na abertura do expediente da segunda-feira 2 de janeiro. Aos 77 anos, seria prudente começar o terceiro mandato vacinado contra o vírus da SPP, síndrome de permanência no poder.
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Publicado em VEJA de 9 de novembro de 2022, edição nº 2814