Já alertamos anteriormente, em diversas ocasiões, acerca dos perigos do avanço vertiginoso do crime organizado sobre certos setores e mercados estratégicos, alguns deles, vitais para o bom funcionamento da economia e da própria sociedade como um todo.
Quando mencionamos a delinquência organizada, estamos nos referindo às grandes facções e quadrilhas delituosas, como PCC, Comando Vermelho e diversos outras, que se dedicam originariamente ao tráfico de drogas, de armas, ao roubo de cargas, contrabando, enfim, às grandes holdings do crime, que desgraçadamente vicejam e se desenvolvem em nosso país. Nesse grupo encontram-se também as milícias, que igualmente atuam em nossos principais centros urbanos.
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Bom lembrar que tal nível de criminalidade guarda enorme fluidez em sua morfologia, e, literalmente, do ponto de vista geopolítico, quando não encontra contenção, “escorre” sobre regiões contíguas e até sobre países vizinhos. Esse caráter líquido da criminalidade também promove a diversificação e ampliação das próprias atividades criminosas, como é o caso do garimpo ilegal e do tráfico de madeira na Região Norte, hoje devidamente turbinadas pela gestão das facções criminosas originárias da Região Sudeste.
No tocante aos mercados legítimos, que estão sendo, pouco a pouco, fagocitados por facções criminosas, encontram-se, entre outros, os setores de combustíveis, de cigarros, de bebidas, da construção civil, de fármacos, vários deles vitais para a saúde da economia.
Importante seja esclarecido que – muitas vezes – é exatamente a adoção de políticas fiscais e tributárias equivocadas, que promovem descontroles nos processos de produção – e a consequente incapacidade de rastreamento dos itens produzidos – que, grosso modo, tornam tais mercados convidativos para a macro-delinquência.
Quando o crime organizado aporta em uma atividade lucrativa, com ele chega a sonegação, o contrabando, a pirataria, a falsificação e a lavagem de capitais, mais ou menos nessa ordem.
Sabemos também que quando um processo de degradação se inicia, muitas vezes podemos observá-lo alcançar um estágio de tamanho comprometimento – e de fortalecimento de estruturas de proteção, endógenas e exógenas – que não conseguiremos mais retroceder. Teremos irremediavelmente chegado ao que se convencionou chamar de “ponto de não retorno”.
E essa tomada – ou larga contaminação – do Estado pela alta criminalidade, pode ocorrer a partir de quatro estágios interligados e consecutivos:
- O primeiro seria o controle e exploração de consideráveis fatias de setores produtivos relevantes para a economia;
- O segundo seria a consolidação dessas posições econômicas, com fortalecimento financeiro suficientemente robusto para o patrocínio de campanhas político-eleitorais visando cadeiras no executivo e legislativo, nos três níveis da administração pública (municipais, estaduais e federal);
- O terceiro seria a formação de “bancadas” próprias, em câmaras municipais, assembleias legislativas e Congresso Nacional, que promoveriam tanto a defesa de seus interesses, como o travamento e o bloqueio de projetos de legítimo anseio da sociedade, no que tange principalmente ao aperfeiçoamento do combate à criminalidade;
- E o quarto e último estágio seria a sedimentação dessas bancadas e a ascensão desses indivíduos (prepostos da criminalidade) a posições de comando nos poderes executivos estaduais e federal, com consequente influência na escolha e nomeação de membros de tribunais de justiça e de contas no âmbito estadual e federal, e até mesmo de tribunais superiores.
Seria esse o passo a passo para a institucionalização da criminalidade nas mais altas esferas políticas – e poderes – da nação.
Por fim, nesse exercício de “pior cenário possível” teríamos um caso de state capture (captura do estado, na nomenclatura da área da criminologia que estuda a delinquência política), cujo epicentro originador estaria à margem dos núcleos ou das elites políticas. Seria, então, a criminalidade organizada – com viés de violência – tomando o controle de posições nucleares e oficiais, nos poderes Executivo, Legislativo e, até mesmo, no próprio poder Judiciário.
Pode parecer algo exageradamente fantasioso, mas lamentavelmente é factível. O caso dos assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes já nos ofereceu um trailer desse filme: um deputado federal e um conselheiro do tribunal de contas do estado como mandantes; um chefe de polícia judiciária como planejador e abafador, e um ex-policial militar como executor. Crime violento, típico das milícias cariocas, com um elenco misto, composto de elementos nucleares (agentes públicos e políticos) atuando institucionalizadamente, com apoio de elementos marginais.
Impende seja ressaltado que, partir desse ponto, o sucesso no enfrentamento à alta criminalidade tangenciaria o impossível, pois a sua representação e a sua atuação estariam efetivamente institucionalizadas, e seus movimentos e ações devidamente protegidas pela oficialidade. A blindagem e a proteção deixariam no passado os rifles automáticos e lançariam mão apenas da caneta que assina os diários oficiais.
E é exatamente por conta de todos esses perigos que não pode prosperar, em hipótese alguma, o malfadado projeto de lei (PL), em curso na Câmara dos Deputados, que anula delações premiadas titularizadas por réus presos. Até porque, não há nação civilizada cujo arcabouço processual penal não preveja a colaboração premiada como um dos mais eficazes instrumentos para o enfrentamento aos crimes organizado e institucionalizado. E tal projeto irá contemplar tanto os políticos corruptos e os golpistas antidemocráticos quanto os líderes de facções criminosas. A festa vai ser geral.
Portanto, se tal PL vicejar, teremos um sintoma inequívoco de que o processo de captura do estado por prepostos da criminalidade já teria sido iniciado.