Quem teve o privilégio de ler As Aventuras de Tintim, do genial quadrinista belga Georges Remi, o Hergé, conhece bem o estereótipo dos generais revolucionários e golpistas latino-americanos, deliciosamente retratados em personagens como os generais Alcazar e Tapioca.
Hergé, que com seus desenhos tão bem traduziu a essência do século XX (até o ano de sua morte, em 1983), mostra em duas de suas obras – O Ídolo Roubado e Tintim e os Tímpanos – a disputa pelo poder na ficcional republiqueta sul-americana de São Theodoro. Alcazar e Tapioca, arquirrivais e militares de alta patente, se digladiam numa disputa sem fim pelo poder de Los Dopicos, a capital santheodorina, que não por acaso é retratada como uma urbe luxuosa e de conjuntos arquitetônicos modernistas, cercada de pobreza por todos os lados. Hergé era de fato um gênio.
Mas o que mais caracterizava esse embate era a forma direta e obstinada adotada pelos dois líderes e oponentes revolucionários. Mesmo presos ou flagrados em suas conspirações, ou até tendo rifles apontados para suas cabeças, os dois jamais se curvavam – e bradavam sempre seus gritos de guerra, dando urras à morte um do outro.
A ficção de certa forma não trai os fatos registrados pela História ao longo desses últimos séculos. Muitos foram os líderes derrotados, militares ou não, que, surpreendidos em conspiração ou tendo falhado nas tentativas de tomada de poder – caíram de pé. Estando do lado certo ou errado, que somente o transcurso do tempo nos permite assinalar (ou não), esses homens em grande maioria não se dobravam. Não negavam seus atos e não engoliam em seco suas crenças e ideais, por mais errados que pudessem estar.
No episódio da já fatídica reunião ministerial de 5 de julho de 2022 – cuja gravação em vídeo foi recentemente tornada pública por ordem do ministro Alexandre de Moraes, o então presidente Jair Bolsonaro e seus generais palacianos Augusto Heleno e Braga Netto falam aberta e escancaradamente sobre virada de mesa, espionagem de adversários políticos com utilização da Abin e outras expressões que não deixam dúvidas sobre as intenções que alimentavam.
O próprio general Paulo Sérgio Nogueira, que na ocasião comandava o Exército Brasileiro, se refere a integrantes do Tribunal Superior Eleitoral como “nossos inimigos”.
Não há dúvidas de que tramavam uma ruptura constitucional – um golpe de estado – para impedir a posse de Lula, no caso de sua vitória nas urnas em outubro de 2022 – o que de fato de confirmou.
E hoje, pelo menos até o momento, todos esses personagens de carne e osso negam peremptoriamente o inegável. Negam que desacreditavam criminosamente – com a disseminação de fake news – o nosso sistema eleitoral, negam que tentaram se articular com outros membros do comando das forças terrestres (assim como com comandantes de outras armas), negam que planejavam prender o presidente do Senado Federal e ministros do STF, enfim, não somente negam tudo isso como têm a cara de pau de se apresentar como democratas, chegando até a afiançar suas crenças no voto eletrônico…
E negam tudo isso mesmo com a farta existência – em contrário – de delações de cúmplices, de documentos e de registros em áudio e vídeo.
Talvez a total ausência de brio demonstrada nessa conduta seja a maior evidência de que Bolsonaro e seus generais palacianos não tinham quaisquer intenções patrióticas, nem tampouco eram movidos por ideais – por pior que fossem. Eram tão somente um grupo de espertalhões querendo se manter no poder por conta das beiradas e boquinhas que suas posições os proporcionavam, e mais nada.
Ao não assumirem – dessa forma – o que fizeram, eles somam à derrota eleitoral (ocorrida em razão da própria incompetência) uma desgraça moral, que os desabona para muito além de qualquer situação de fracasso.
Enfim, faltou-lhes compostura no momento do flagrante, no instante em que foram pegos com a boca na botija… e aí a coisa ficou mais feia ainda.
Viva o general Alcazar! Morte ao general Tapioca!