Um olhar para a Amazônia revela uma visão de passado, presente e futuro do próprio país. Um caso emblemático é o comércio ilegal de ouro no Brasil, que vem, nas últimas cinco décadas, promovendo uma extração intensiva, desordenada e extremamente danosa ao meio ambiente, e, consequentemente, aos interesses da própria sociedade brasileira.
Na década de 1980, Serra Pelada exigiu a presença do Estado, ocasião em que foi definida a compra exclusiva do ouro pela Caixa Econômica Federal, que também se encarregava do transporte do metal precioso, invariavelmente escoltada por agentes da Polícia Federal. Era o Estado presente e ativo, zelando pela legalidade e correção de parte relevante do processo.
Nos anos subsequentes, a exclusividade do Estado na compra de ouro mostrou-se inviável em outras regiões brasileiras, como em Itaituba, no Pará.
Atualmente, o ouro oriundo de garimpos deve ser comprado exclusivamente pelas Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários, as DTVMs, que são instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central para atuar na intermediação de títulos e valores mobiliários, nos mercados financeiros e de capitais. E as DTVMs realizam compra de ouro como ativo financeiro.
O ouro produzido de mineradoras pode também ser comercializado como mercadoria e vendido diretamente para o mercado interno ou exportado. Mas ambos os fluxos estão sujeitos ao descaminho e são utilizados como instrumentos de capitalização do crime organizado.
Nesse contexto, temos de considerar que grande parte das atividades de mineração de ouro encontra-se em regiões da Amazônia, onde o poder público vem perdendo enorme terreno para a criminalidade, dando origem a um verdadeiro faroeste, isto é, áreas de ocorrência do que se convencionou chamar de “narcodesmatamento”. Trata-se de um território onde o tráfico de drogas e a pistolagem promoveram uma joint venture com crimes ambientais como extração de madeira e garimpo ilegais – tudo devidamente chancelado pela delinquência política institucionalizada. É o crime organizado em conjunção carnal com o crime organizante.
Diante de ações efetivas da Polícia Federal e da Receita Federal, várias iniciativas foram realizadas pelas DTVMs na tentativa de mostrar a rastreabilidade da cadeia produtiva na qual estão inseridas. Por outro lado, as empresas, diante de exigências de uma mineração responsável, bem como para garantir a própria segurança patrimonial, também utilizaram-se de mecanismos de rastreio ou certificação.
Um ponto em comum é que, apesar dos esforços, o descaminho do ouro só fez aumentar, reforçando que pouco adiantaram as ações dos próprios agentes do mercado, sejam eles produtores ou compradores.
Nesse modelo de autorregulação, a regulação pública é substituída pela privada, exercida por terceiros ou, até mesmo, por associações (também privadas), e está baseada na adesão e conformidade consensuais do agente privado.
Esse mecanismo contraria frontalmente o pensamento majoritário de que a regulação seria uma atividade tipicamente estatal, na qual o Estado intervém indiretamente nas atividades econômicas a fim de evitar malfeitos, corrigir eventuais falhas de mercado e garantir o interesse público – que deve permear a exploração dessa relevante atividade econômica.
No entanto, na autorregulação prevalecem os interesses privados dos atores envolvidos e, somente em segundo plano, os interesses difusos da sociedade.
Apesar de uma parte da doutrina do Direito Regulatório entender que a autorregulação pode ser uma forma de descentralizar a regulação e, por conseguinte, aproximar, de forma mais eficiente, o regulador privado do regulado, a autorregulação possui pontos negativos que precisam ser levados em consideração antes de serem utilizados ou reconhecidos pelo Estado como um instrumento eficaz.
A escolha de um determinado processo em temas que guardam transversalidade com áreas sensíveis como segurança pública, justiça, meio ambiente e saúde deve sempre considerar a possibilidade da ocorrência de impactos e efeitos colaterais danosos.
A prevalência dos interesses privados pode acarretar falhas de mercados, desconformidades com as máximas de proteção ao meio ambiente e à dignidade humana, além de causar dificuldades em relação à transparência e à prestação de contas. Há, também, um considerável aumento da superfície relativa para a ocorrência de lavagem de dinheiro. São consequências desastrosas que devem ser sopesadas.
Ou seja, a raposa definitivamente não pode ser encarregada de cuidar do galinheiro.
Merecem reconhecimento os esforços que o Estado brasileiro já vem realizando, em boas iniciativas como o Projeto Ouro Alvo, da Polícia Federal, que tem como objetivo o mapeamento do perfil do minério com base em análise em nível molecular, determinando o que seria o “DNA do ouro”, isto é, identificando a procedência do metal. Nesse programa, conduzido por peritos criminais federais, está prevista a criação e alimentação de uma ouroteca, que funcionará como “base de padrões e amostras” para identificação do ouro nos inquéritos policiais conduzidos pela PF. A palavra chave nessa empreitada é rastreabilidade.
Mas tudo isso pode ir por terra com a vulnerabilidade representada pela adoção de modelos de autorregulação para o business do ouro.
Assim, o melhor caminho é reforçar o papel dos agentes de mercado, como produtores ou compradores, mas sob regras de Estado, no que se refere à rastreabilidade da cadeia de produção do metal precioso, que deve ser exercida por um ente forte, de Estado, capaz de garantir o interesse social em primeiro lugar e conferir a credibilidade que a sociedade espera. Estado enxuto é uma coisa, estado omisso e ausente é outra bem diferente.