Não existe família perfeita, mas a de Natasha Romanoff vai além: nem família de verdade ela é — exceto no particular de haver nela uma tal quantidade de erros cometidos e de mágoa represada que só uma família mesmo poderia acumular. Nem Melina (Rachel Weisz) é mãe nem Alexei (David Harbour) é pai; são ambos agentes independentes de uma organização russa que opera nas sombras. Da mesma forma, nem a pequena Yelena nem a pré-adolescente Natasha são filhas de quem quer que seja; uma é órfã, a outra foi vendida ao Estado. Mas, nos três anos em que essa célula secreta permaneceu em Ohio, no interior americano, a obrigação de manter a fachada resultou em um arremedo convincente de vida familiar. A ilusão, porém, acaba de forma abrupta. Alexei foi desmascarado e, ao fim da fuga desesperada para Cuba, os véus caem de vez. Natasha implora para não ser mandada de volta à Sala Vermelha do general Dreykov (Ray Winstone), onde retomará o treinamento de “viúva negra”, ou assassina a serviço do governo, mas nem os “pais” a ajudam nem ela consegue salvar a si ou a Yelena. Passadas décadas, tendo já há tempo desertado e se juntado aos Vingadores, Natasha continua a acreditar que pai, mãe e irmã provavelmente estão mortos. Até que chega a ela um sinal que só pode ter vindo de Yelena — e o passado do qual ela nunca falou retorna de forma avassaladora em Viúva Negra (Black Widow, Estados Unidos, 2021), a partir de sexta-feira 9 em cartaz nos cinemas e disponível também na Disney+.
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Primeiro apresentada em Homem de Ferro 2 (2010) como não muito mais que um ornamento, Natasha Romanoff cresceu em importância no Universo Cinematográfico Marvel (ou MCU, na sigla em inglês) por força dos tempos e da interpretação de Scarlett Johansson, que a fez decidida, grave até no senso de humor e com uma sugestão indefinível, mas marcante, de arrependimento e tristeza. Sua morte em Vingadores: Ultimato (2019) foi talvez a mais pungente de todas, pelo ato de sacrifício em que ela se deu e por acenar com algo mais — um alívio, ou até uma libertação. Passado no rescaldo dos eventos de Capitão América: Guerra Civil (2016), Viúva Negra vai deslindando do que, exatamente, Natasha poderia desejar libertar-se. À medida que a história de Yelena (a maravilhosa Florence Pugh), Melina e Alexei se vai expandindo, vê-se que Dreykov aperfeiçoou as técnicas de subjugação da vontade alheia para bem além da lavagem cerebral costumeira, valendo-se de um recurso que, como ele mesmo diz, é abundante: meninas e jovens mulheres desprezadas, abandonadas, deixadas à margem ou subestimadas.
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Se na estrutura Viúva Negra é um thriller de espionagem — e muito ágil —, na essência ele é um drama cujo empuxo é palpável desde as primeiras cenas: crianças amam de maneira irremediável e sentem o abandono de modo insuperável e, assim como na infância é feroz o instinto de Natasha em proteger Yelena, na idade adulta Yelena ainda ferve de indignação por Natasha tê-la deixado para trás — por menos razoável que seja a ideia de que uma menina tão pequena pudesse salvar outra menor ainda. Excelentes na maneira como colaboram entre si, Johansson e Pugh fazem da cena do reencontro das irmãs um combate que é ao mesmo tempo físico e psicanalítico: regridem até o momento em que se separaram, exorcizam as questões mais urgentes e chegam juntas até um ponto a partir do qual talvez possam avançar.
Creditem-se a solidez e a veracidade dessa base na conta da diretora australiana Cate Shortland, do fenomenal Lore (2012), sobre a filha adolescente de um comandante nazista que conduz os irmãos menores em uma fuga conforme os Aliados adentram o território alemão, e do perturbador A Síndrome de Berlim (2017), sobre uma turista que é feita prisioneira pelo rapaz alemão com quem passou uma noite. Shortland é uma mestra em cunhar imagens altamente subjetivas, de enquadramentos fugidios, que parecem resultar do olhar de uma pessoa mais do que de uma câmera. É surpreendente não só à medida que seu estilo sobrevive em Viúva Negra, como de fato alimenta o filme e redobra o impacto das cenas de ação estupendamente coreografadas.
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Buscar diretores em nichos inusitados e então aproveitar ao máximo os talentos específicos de cada um deles — em vez de diluí-los, como seria mais costumeiro no segmento da superprodução — é um ponto-chave no plano da Marvel. Entre os 24 filmes e o punhado de séries do MCU lançados até aqui, Viúva Negra é um dos que melhor ilustram o potencial de êxito dessa tática: a confiança mal ou bem depositada pelas mulheres em figuras masculinas é central no trabalho de Shortland — assim como a extensão em que elas se deixam nortear pelos homens, ou assumem as ideias deles e incorporam seus pontos de vista. Daí a qualidade instável, ou até arisca, das imagens que ela cria; suas personagens estão tateando em um mundo que repentinamente se apresenta por outro ângulo e vem cheio de dúvida e de incerteza. No MCU, porém, nada termina e tudo continua. Se Natasha Romanoff/Scarlett Johansson ganham aqui a despedida que mereciam, Yelena Belova/Florence Pugh já estão a postos, de olhos bem abertos, pés pisando firme e cara de que podem com tudo e qualquer um.
Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745
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