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Vinte anos após chegada ao país, livros de Harry Potter seguem essenciais

O primeiro volume da saga é ainda uma porta de entrada ideal para a leitura — além de um remédio contra o isolamento

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 jun 2024, 14h37 - Publicado em 15 Maio 2020, 06h00

A arte de começar uma narrativa conta com exemplos celebérrimos — o conciso “Chame-me Ismael” de Moby Dick, o infinitamente citado “Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira” de Anna Kariênina, o metalinguístico “Se serei o herói da minha própria vida, ou se essa posição será ocupada por alguma outra pessoa, é o que estas páginas devem mostrar” de David Copperfield. Neste novo século, entretanto, nenhum início abriu tantas portas quanto o parágrafo coloquial e travesso que diz que “O Sr. e a Sra. Dursley, da rua dos Alfeneiros, nº 4, se orgulhavam de dizer que eram perfeitamente normais, muito bem, obrigado. Eram as últimas pessoas no mundo que se esperaria que se metessem em alguma coisa estranha ou misteriosa, porque simplesmente não compactuavam com esse tipo de bobagem”. Harry Potter e a Pedra Filosofal, assim, mudou os rumos de uma geração ao enchê-la de apreensão, já na primeira página, para o que seria do menino Harry Potter na casa de gente como os banais, medíocres e egoístas Dursley, os parentes perfeitamente normais, obrigado, que eram só o que lhe restava depois de perder os pais no ataque de um feiticeiro maléfico e sobreviver por milagre. Harry, porém, logo seria libertado, ao ser chamado para a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts e embarcar em uma jornada de sete livros repletos de adversidades terríveis e eletrizantes passes de mágica — durante a qual formaria sua verdadeira família, forjada entre amigos e mentores.

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Vinte anos após seu lançamento no Brasil — que a editora Rocco comemora com um box de luxo —, Harry Potter permanece uma iniciação ideal na leitura. Ganha relevância adicional com o tumulto escolar e doméstico instaurado pela Covid-19: enquanto a volta às aulas permanece sem data certa e sem esquema claro, a série funciona como um complemento curricular prazeroso e proveitoso. Hoje a obra de J.K. Rowling é o centro de um colosso de entretenimento que inclui, além de 450 milhões de cópias vendidas em 78 idiomas (5 milhões delas no Brasil), oito filmes que somam 7,7 bilhões de dólares em bilheteria, atrações em parques temáticos — no momento, fechadas — e um sem-­número de criações derivadas. Mas a leitura é a melhor maneira de adentrar esse universo — silenciosa, em companhia dos pais ou na voz de atores como Eddie Redmayne, Stephen Fry e Dakota Fanning, que até junho lerão semanalmente um capítulo de A Pedra Filosofal no site harrypotterathome.com, em vídeos que a editora brasileira disponibiliza com legendas. “As séries em geral vêm e passam. Harry Potter, ao contrário, se expande”, diz Paulo Rocco, dono da editora que leva seu sobrenome.

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No vendaval político que, no país, veio na esteira da pandemia, Harry Potter tem outro papel ainda: em cada página dos sete volumes, a autora J.K. Rowling reforça princípios cardeais como a importância do bem comum, os perigos do messianismo e do culto à personalidade (ao qual os bruxos adeptos do tenebroso Voldemort aderem sem restrição ética nem espírito crítico) e a necessidade de formar uma bússola moral e assumir responsabilidades. Como tantas vezes já se disse, Rowling escreveu A Pedra Filosofal à mesa de um café, com um bebê a reboque, para escapar do frio da casa sem aquecimento. Não teria sido difícil então caracterizá-la como uma devaneadora — daí o valor alto que ela coloca na compreensão pelo que é diferente, e sua acidez para com os Dursley: só os obtusos e os covardes não toleram a imaginação, o debate e a independência de pensamento.

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Muito já se depreciou Harry Potter também. O americano Harold Bloom, o maior nome da crítica literária, achava que ler a série e não ler nada dava na mesma — mas foi desmentido pela legião de crianças e também de adultos que avançaram e se aprofundaram no hábito da leitura a partir da saga do bruxinho. Segmentos mais ortodoxos do cristianismo, por sua vez, condenaram o entusiasmo pela feitiçaria que a série supostamente encorajava. É um desses casos em que, fechando-se o foco na árvore, se deixa de ver a floresta. Questões de nomenclatura à parte, todos os valores que Rowling defende são impecavelmente éticos e compassivos, e não contradizem nenhum dos mandamentos fundamentais das maiores religiões. Ativíssima no Twitter, no qual pratica a mesma espirituosidade demonstrada nos livros, Rowling continua sendo uma combatente aguerrida da boa vontade — e dos bons modos.

Com reportagem de Amanda Capuano

Publicado em VEJA de 20 de maio de 2020, edição nº 2687

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