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Por Coluna
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Vida Selvagem

Por Isabela Boscov Atualizado em 11 jan 2017, 16h21 - Publicado em 17 jun 2016, 19h58

Pode-se desculpar um pai que sequestra os filhos? O diretor Cédric Kahn não quer julgar

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Nas cenas iniciais de Vida Selvagem, Nora (Céline Sallette) age como alguém que está tentando sair de um pesadelo: frágil e mal-cuidada, nervosíssima, ela arrebanha seus três filhos com a ajuda de uma amiga, enfia-os no carro, corre atrás de um dos meninos que se desgarra, briga com ele e implora – e finalmente consegue levá-los todos para a casa de seus pais. Logo Paco (Mathieu Kassovitz) estará no portão da casa, gritando; quer os filhos de volta, e também os filhos pedem por ele. Esta, porém, não é apenas uma separação traumática (não que isso fosse pouco, claro). É um rompimento de casal, uma ruptura de família e uma quebra total de um modo de vida: anos antes, quando Nora era mãe só de Thomas e ela e Paco se conheceram, o que os unira era o desejo comum de uma existência itinerante, na natureza – mas agora os dois filhos que eles tiveram juntos, Tsali e Okyesa, estão com 8 e 7 anos, e Nora se cansou, em suas palavras, “da lama e da falta de comida”. Decidiu voltar à vida como ela era e dar aos três filhos a chance de algo mais sólido, ou mais normal. Paco se sente traído no que tem de mais profundo: ele crê fervorosamente que é preciso criar os meninos longe do mundo consumista que odeia. E, indignado com a decisão do tribunal, que dá a guarda dos meninos a Nora e restringe suas visitas, ele sequestra Tsali e Okyesa e some com eles durante nada menos que onze anos.

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O diretor Cédric Kahn, que passou ele próprio a infância em comunidades rurais como aquelas a que Paco vez por outra se junta, recria em Vida Selvagem um episódio célebre na França. A busca de Nora pelos filhos foi muito noticiada durante a década que ela tomou, e evidentemente todo o país deu a razão a ela, sempre. O diretor faz aqui, então, uma espécie de exercício: o de ver o ocorrido pelo lado de Paco, sem tomar partido nem julgar, e tentar reconstituir seu convívio com Tsali e Okyesa – que, tirados da mãe naquela idade em que os meninos veem o pai como um herói, vão com ele de bom grado; criados desde o nascimento num trailer, indo de lá para cá, eles se ressentem tanto quanto Paco dessa nova vida com regras a que estão sendo submetidos.

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E, no começo, Tsali e Okyesa sentem mesmo que estão em um idílio: fugir da polícia é uma aventura, tomar banho em rios e pegar peixes com as mãos é lindo, as noites em volta da fogueira são mágicas. Gradualmente, as coisas mudam: como Nora disse, há mesmo muita lama, muito frio, muito trabalho com pouca compensação. E a adolescência é o que é – não importa a imagem que um pai faça de si mesmo, porque os filhos vão reduzi-la a pó. Para o Tsali de 17 anos, seu pai não é o rebelde que o próprio Paco julga ser; é um chato cheio de ordens estúpidas, que o envergonha diante dos amigos. Quando Tsali e Okyesa cortam os cabelos, Paco os enxovalha por estarem “aderindo à sociedade de consumo”.

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É fácil compreender a idealização da natureza que fez Paco, um pai dedicado, querer salvar os filhos de uma vida em que tudo está prescrito e decidido desde que se nasce – mas é evidente que ele incorreu no exato erro que pretendia evitar, e determinou os rumos dos filhos com muito mais força do que a “sociedade” que ele tanto temia seria capaz de fazer. E admiro a imparcialidade e a compaixão de Cédric Kahn – mas, até porque ele é tão honesto, achei difícil ter qualquer generosidade para com Paco. Separar dois filhos da mãe durante toda a infância e a adolescência deles já é criminoso; fazê-lo em nome de uma filosofia mal-ajambrada é indesculpável; e extorquir a cumplicidade das crianças nessa separação é uma brutalidade.

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No filme, ao menos, Paco faz um teatro para os meninos logo após raptá-los: diz que eles podem escolher entre viver com ele, livres, ou viver com aqueles avós horríveis, em uma casa cheia de regras e com uma mãe que pretende separá-lo deles. Tsali e Okyesa fazem, claro, sua pretensa escolha. E, por causa disso, creem serem tão responsáveis quanto o pai pela situação. Vivem, assim, até os 18 anos usando nomes falsos e decorando histórias inventadas, dizendo que sua mãe está morta, participando de fugas e mentindo a todos que cruzam seu caminho – Paco, inclusive, convence-os que, se forem descobertos, eles irão para o reformatório. E, em nenhum momento, os garotos fazem sequer ideia de que a mãe nunca desistiu deles e continua à sua procura. Por mais que Cédric Kahn peça que se veja pelos olhos de Paco o desmoronamento de seu sonho e a atitude desesperada que ele tomou para preservá-lo, basta o espectador colocar-se por um momento no lugar dos meninos para que essa tese revele sua fragilidade: seja qual for o bem imaginado por Paco, o fato é que Tsali e Okyesa foram enganados todas as horas do dia, todos os dias, durante uma década – e essa é uma das violências mais completas que se pode perpetrar contra uma criança. Em tempo: como Vida Selvagem se baseia no livro escrito pelos dois filhos em colaboração com o pai, tenho de supor que os próprios rapazes não partilham da minha visão do seu caso.


Trailer


VIDA SELVAGEM
(Vie Sauvage)
Bélgica/França, 2014
Direção: Cédric Kahn
Com Mathieu Kassovitz, Céline Sallette, David Gastou, Sofiane Neveu, Romain Depret, Jules Ritmanic, Tara-Jay Bangalter
Distribuição: Imovision

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