Vida Selvagem
Pode-se desculpar um pai que sequestra os filhos? O diretor Cédric Kahn não quer julgar

Nas cenas iniciais de Vida Selvagem, Nora (Céline Sallette) age como alguém que está tentando sair de um pesadelo: frágil e mal-cuidada, nervosíssima, ela arrebanha seus três filhos com a ajuda de uma amiga, enfia-os no carro, corre atrás de um dos meninos que se desgarra, briga com ele e implora – e finalmente consegue levá-los todos para a casa de seus pais. Logo Paco (Mathieu Kassovitz) estará no portão da casa, gritando; quer os filhos de volta, e também os filhos pedem por ele. Esta, porém, não é apenas uma separação traumática (não que isso fosse pouco, claro). É um rompimento de casal, uma ruptura de família e uma quebra total de um modo de vida: anos antes, quando Nora era mãe só de Thomas e ela e Paco se conheceram, o que os unira era o desejo comum de uma existência itinerante, na natureza – mas agora os dois filhos que eles tiveram juntos, Tsali e Okyesa, estão com 8 e 7 anos, e Nora se cansou, em suas palavras, “da lama e da falta de comida”. Decidiu voltar à vida como ela era e dar aos três filhos a chance de algo mais sólido, ou mais normal. Paco se sente traído no que tem de mais profundo: ele crê fervorosamente que é preciso criar os meninos longe do mundo consumista que odeia. E, indignado com a decisão do tribunal, que dá a guarda dos meninos a Nora e restringe suas visitas, ele sequestra Tsali e Okyesa e some com eles durante nada menos que onze anos.

O diretor Cédric Kahn, que passou ele próprio a infância em comunidades rurais como aquelas a que Paco vez por outra se junta, recria em Vida Selvagem um episódio célebre na França. A busca de Nora pelos filhos foi muito noticiada durante a década que ela tomou, e evidentemente todo o país deu a razão a ela, sempre. O diretor faz aqui, então, uma espécie de exercício: o de ver o ocorrido pelo lado de Paco, sem tomar partido nem julgar, e tentar reconstituir seu convívio com Tsali e Okyesa – que, tirados da mãe naquela idade em que os meninos veem o pai como um herói, vão com ele de bom grado; criados desde o nascimento num trailer, indo de lá para cá, eles se ressentem tanto quanto Paco dessa nova vida com regras a que estão sendo submetidos.

E, no começo, Tsali e Okyesa sentem mesmo que estão em um idílio: fugir da polícia é uma aventura, tomar banho em rios e pegar peixes com as mãos é lindo, as noites em volta da fogueira são mágicas. Gradualmente, as coisas mudam: como Nora disse, há mesmo muita lama, muito frio, muito trabalho com pouca compensação. E a adolescência é o que é – não importa a imagem que um pai faça de si mesmo, porque os filhos vão reduzi-la a pó. Para o Tsali de 17 anos, seu pai não é o rebelde que o próprio Paco julga ser; é um chato cheio de ordens estúpidas, que o envergonha diante dos amigos. Quando Tsali e Okyesa cortam os cabelos, Paco os enxovalha por estarem “aderindo à sociedade de consumo”.

É fácil compreender a idealização da natureza que fez Paco, um pai dedicado, querer salvar os filhos de uma vida em que tudo está prescrito e decidido desde que se nasce – mas é evidente que ele incorreu no exato erro que pretendia evitar, e determinou os rumos dos filhos com muito mais força do que a “sociedade” que ele tanto temia seria capaz de fazer. E admiro a imparcialidade e a compaixão de Cédric Kahn – mas, até porque ele é tão honesto, achei difícil ter qualquer generosidade para com Paco. Separar dois filhos da mãe durante toda a infância e a adolescência deles já é criminoso; fazê-lo em nome de uma filosofia mal-ajambrada é indesculpável; e extorquir a cumplicidade das crianças nessa separação é uma brutalidade.

No filme, ao menos, Paco faz um teatro para os meninos logo após raptá-los: diz que eles podem escolher entre viver com ele, livres, ou viver com aqueles avós horríveis, em uma casa cheia de regras e com uma mãe que pretende separá-lo deles. Tsali e Okyesa fazem, claro, sua pretensa escolha. E, por causa disso, creem serem tão responsáveis quanto o pai pela situação. Vivem, assim, até os 18 anos usando nomes falsos e decorando histórias inventadas, dizendo que sua mãe está morta, participando de fugas e mentindo a todos que cruzam seu caminho – Paco, inclusive, convence-os que, se forem descobertos, eles irão para o reformatório. E, em nenhum momento, os garotos fazem sequer ideia de que a mãe nunca desistiu deles e continua à sua procura. Por mais que Cédric Kahn peça que se veja pelos olhos de Paco o desmoronamento de seu sonho e a atitude desesperada que ele tomou para preservá-lo, basta o espectador colocar-se por um momento no lugar dos meninos para que essa tese revele sua fragilidade: seja qual for o bem imaginado por Paco, o fato é que Tsali e Okyesa foram enganados todas as horas do dia, todos os dias, durante uma década – e essa é uma das violências mais completas que se pode perpetrar contra uma criança. Em tempo: como Vida Selvagem se baseia no livro escrito pelos dois filhos em colaboração com o pai, tenho de supor que os próprios rapazes não partilham da minha visão do seu caso.
Trailer
VIDA SELVAGEM
(Vie Sauvage)
Bélgica/França, 2014
Direção: Cédric Kahn
Com Mathieu Kassovitz, Céline Sallette, David Gastou, Sofiane Neveu, Romain Depret, Jules Ritmanic, Tara-Jay Bangalter
Distribuição: Imovision
Pesquisa: maioria dos brasileiros desaprova o trabalho de Lula
Com trajetória errática e efeito-Flávio, direita termina 2025 em busca de um rumo
Zé Felipe anuncia fim do namoro com Ana Castela
João Gomes se manifesta após suposto climão em especial de Roberto Carlos
Consumo de queijos com alto teor de gordura pode estar associado a menor risco de demência, sugere pesquisa







