Durante boa parte de seus oito anos no ar, House foi a série mais assistida no mundo. Agora a distinção cabe a The Good Doctor, que disparou para o topo da audiência desde sua estreia, em 2017. As duas têm muito em comum: seus protagonistas têm habilidade excepcional para a medicina, mas são um desastre no trato social – House porque era impaciente e ranzinza e porque suas terríveis dores crônicas azedavam o que sobrasse de seu humor; e o jovem residente Shaun Murphy por ser autista. As duas, também, usufruem um prestígio que foi se tornando raro nas séries da TV aberta e são produzidas por David Shore, um ex-advogado e ex-comediante de stand-up que sabe escrever que é uma maravilha e, principalmente, sabe escalar atores: se uma série vai se passar sempre no mesmo cenário (um hospital, em ambos os casos) e explorar sempre o mesmo mote (um ou dois casos médicos diferentes por episódio), é preciso que o ator principal seja capaz não só de ganhar a afeição do espectador, mas também de criar uma performance com infinitos pontos de interesse – como Hugh Laurie fez com o dr. Gregory House e, agora, Freddie Highmore faz com o dr. Shaun Murphy. O fato é que comecei a assistir sem muita expectativa mas, no final do segundo episódio, já estava completamente enganchada. Vi os 36 episódios disponíveis na GloboPlay (18 de cada temporada) em coisa de uma semana, com grande prejuízo das horas de sono e muito lucro para a minha diversão – e, há que confessar, também para os meus sentimentos. (A terceira temporada estreia nesta segunda-feira 23 nos Estados Unidos, mas ainda não tem data para chegar aqui.)
Freddie Highmore, que está com 27 anos e cara de 18, era uma graça em criança, quando fez Em Busca da Terra do Nunca (2004) e A Fantástica Fábrica de Chocolate (2005) – e, entre 2013 e 2017, com a série Bates Motel, juntou-se a um clube restrito, do qual Christian Bale é membro honorário: o dos atores mirins que evoluem para estupendos atores adultos. Freddie tem muito preparo técnico (como Hugh Laurie, ele é inglês, mas faz um sotaque americano irretocável), e calibra com critério os trejeitos corporais e faciais do autismo: a dificuldade de olhar outras pessoas nos olhos, a fala sem muita inflexão, o jeito de balançar o corpo para os lados, os gestos estranhos com as mãos. Se a ideia de passar 40 e tantos minutos de cada vez na companhia de alguém assim soa cansativa, garanto que se trata de um engano: Shaun Murphy é encantador. É cheio de curiosidade pela vida e de entusiasmo pela medicina e particularmente pela cirurgia (como tem síndrome de savant, acumula e memoriza quantidades prodigiosas de informação, e tem uma visão espacial privilegiada). E, embora não saiba decifrar as emoções alheias ou expressar as suas, Shaun tem sentimentos verdadeiros e profundos – sobretudo pelo dr. Aaron Glassman (o maravilhoso Richard Schiff), que foi seu mentor desde a adolescência e, como diretor do hospital Bonaventure de San José, na Califórnia, batalha para conseguir que Shaun seja aceito como residente ali.
Naturalmente, boa parte da primeira temporada é dedicada às reações dos chefes e dos outros residentes a dividir o trabalho com um autista, e à surpresa dos pacientes atendidos por um médico excessivamente franco, que anuncia coisas como “Talvez seja uma bactéria devoradora de carne” ou “São grandes as chances de que você morra durante a cirurgia”. Na maioria dos casos, Shaun pouco a pouco consegue dispersar os preconceitos; em algumas questões, porém, continua a depender da supervisão alheia – que, cada vez mais, é fornecida de boa vontade: com sua competência, seu caráter e sua coragem, mas também sua fragilidade, Shaun desperta o instinto de proteção dos colegas. E mais ainda o do espectador. Em várias ocasiões, fiquei pessoalmente magoada ou indignada com o tratamento dispensado a ele, e comemorei as não poucas vezes em que ele conseguiu dar um passo adiante. Como em Atypical, outra série muito boa protagonizada por um autista (essa, disponível na Netflix), o eixo está muito mais nos pontos em comum entre o espectador e o personagem do que nas diferenças; não há no mundo quem já não se tenha sentido preterido, incompreendido, injustiçado ou posto de escanteio simplesmente por ser quem é. Como – repito – David Shore escreve muito bem e Freddie Highmore é um tremendo ator, The Good Doctor consegue explorar esse eixo sem pieguice e com graça genuína. Não por acaso, é hoje a série mais ilustrativa do que vem se chamando, no jargão da TV, de “banho quente” – aqueles programas que trazem conforto e calor por se preocuparem mais em reafirmar a fé nos bons anjos dos protagonistas do que em esmiuçar seus demônios.