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“Roma” restaura, para o presente, a memória do passado

Filme do mexicano Alfonso Cuarón, lançado na Netflix mas vencedor em Veneza, mostra os assombros de que o cinema é capaz

Por Isabela Boscov 23 dez 2018, 20h52

Nos planos muito abertos, que abarcam vários cômodos da mesma casa ou, às vezes, vistas até o horizonte de uma praia, de um bairro de periferia, de um parque de diversões rústico e mesmo de uma fazenda, é quase sempre Cleo (Yalitza Aparicio) o eixo que conduz a movimentação da câmera: a empregada Cleo, tão ativa mas também tão silenciosa e serena, tão à margem da família mas tão central para ela, em Roma não é mais a eterna coadjuvante, e sim o objeto da curiosidade vívida do diretor Alfonso Cuarón, que por meio dela reconstrói um ano crucial – entre 1970 e 1971 – da sua infância, da trajetória do seu México natal e também da vida da própria Cleo. Uma vida que Cuarón percebe como quase secreta, ou pelo menos nunca desvendada: entre lavar o quintal e estender a roupa no terraço no topo da casa, entre pôr as crianças na cama e apartar as brigas delas, entre fazer o jantar e servir um chá ao patrão, quem seria Cleo? (Note que, no final, o filme é dedicado a Lupe – a pessoa real em quem Cuarón moldou Cleo, e que ainda hoje faz parte da vida da família.)

Veja aqui uma breve resenha em vídeo, e/ou continue lendo para uma crítica mais detalhada:

Fotografado pelo próprio Cuarón em um preto e branco de efeito pictórico assombroso, Roma é um ato de restauro do passado e de construção da memória, em que observações que só muito mais tarde ele poderia articular – por exemplo, a tragédia de uma gravidez indesejada, ou ainda a maneira perversa como a divisão étnica do México coincide com sua divisão socioeconômica – se entrelaçam com as impressões formadas décadas atrás e preservadas intactas. Aquilo que aos 9 ou 10 anos ele mal entenderia ou perceberia surge, em Roma, como a trama verdadeira da sua vida: a presença apenas ocasional do pai, que se manifesta na forma de manobras complicadas para estacionar dentro de um corredor estreito um Galaxy imenso (carro que, mais tarde, a mãe faz questão de arrebentar, dirigindo da maneira mais displicente de que é capaz); a aflição da mãe largada com quatro filhos, o esforço da avó para ajudar, o apoio indispensável de Cleo – que também ela será largada com um filho na barriga e violentamente rechaçada pelo pai da criança. O filme transpira a perplexidade do Cuarón de hoje com a indiferença e a mesquinhez masculinas (levar embora as estantes e deixar os livros? Que tipo de pessoa minúscula faz uma coisa dessas?), e a sua admiração intensa pelas mulheres que sempre ficam porque alguém, afinal, tem que ficar. (A quem diz que Roma é o Que Horas Ela Volta mexicano, eu diria: nada a ver. São territórios muito diferentes.)

Roma
(Netflix/Divulgação)

Cuarón é tão virtuosístico na forma como compôs Roma, aliás, que se vale da imensa profundidade de foco com que fotografa (ou seja, o que está lá atrás é tão nítido quanto o que está bem na frente) para, quase sempre, dividir assim a imagem: o que está em primeiro plano é a parte objetiva do que ele está narrando, e o que está em último plano é a parte subjetiva, a da memória. Repare ainda como a câmera em geral se movimenta paralelamente aos personagens: é o equivalente cinematográfico do narrador onisciente da literatura, aquilo que tudo vê e tudo sabe, e que é capaz de apreender do que está vendo um sentido que talvez ainda escape aos personagens. É uma façanha, em especial quando se considera que não se usaram sets construídos, mas quase só locações reais. E, para quem conhece bem os filmes de Cuarón, recomendo procurar pistas deles em Roma: o clímax na praia que lembra muito E a Sua Mãe Também, o parto que praticamente reproduz o de Filhos da Esperança, a matinê em que Cleo e o namorado veem um filme sobre dois astronautas tentando se agarrar um ao outro no espaço e é uma citação direta de Gravidade. Não apenas Roma é cortado do tecido da sua vida, parece dizer Cuarón: todos os seus filmes, de alguma maneira, o são. Certíssimo está o Festival de Veneza que, em vez de ceder às picuinhas da discussão sobre streaming e cinema, premiou Roma com o Leão de Ouro. Se isto aqui não é cinema, não sei o que mais seria. E é um cinema tão perene que, visto hoje, ou daqui a dez anos ou em cinquenta, terá potencialmente a mesma capacidade de, por meio das lembranças de Cuarón, levar cada espectador a cristalizar as suas próprias lembranças.

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Trailer

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ROMA
México/Estados Unidos, 2018
Direção: Alfonso Cuarón
Com Yalitza Aparicio, Marina de Tavira, Verónica García, Diego Cortina Autrey, Carlos Peralta, Marco Graf, Daniela Demesa, Nancy García García, Jorge Antonio Guerrero, Fernando Grediaga

 

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