Poucos cineastas têm direito a um ano como foi o de 2021 para Ryusuke Hamaguchi, com dois trabalhos de primeira grandeza circulando às vezes ao mesmo tempo em festivais ao redor do mundo. O mais extraordinário deles, Drive My Car, um filme de três horas que são a medida perfeita para o conto de quarenta páginas do escritor Haruki Murakami em que o filme se baseia, subiu tanto na cotação do mercado que permanece, até o momento, sem distribuidor no Brasil e, portanto, também sem previsão de estreia nacional. Enquanto essa situação não se resolve, o luminoso Roda do Destino (Guzen to Sozo/Wheel of Fortune and Fantasy, Japão, 2021), já em cartaz nos cinemas, é uma quase necessária introdução aos temas e ao estilo particular do diretor japonês.
Dividido em três contos e com enxutas duas horas de duração (Happy Hour, que Hamaguchi lançou em 2015, tinha 317 minutos, todos eles indispensáveis), Roda do Destino entretece o imprevisto anunciado no título com a necessidade que ele impõe de fazer-se uma escolha. No primeiro episódio, uma produtora de moda e uma modelo dividem um táxi e, na conversa, a modelo percebe que o homem por quem a amiga está se apaixonando é o ex-namorado que ela largou. No segundo enredo, um estudante universitário humilhado por um professor arma uma cilada para ele usando sua colega e amante, mas a artimanha se metamorfoseia em uma interação reveladora. No terceiro conto, duas amigas de colégio se reencontram depois de vinte anos — mas talvez essas duas mulheres nunca tenham se conhecido e estejam apenas projetando na pessoa à sua frente aquela que desejavam encontrar.
O que une as três histórias é o sentido delas, de que ninguém pode compreender os próprios sentimentos ou conhecer verdadeiramente algo de si a não ser pelos olhos de outro (ou pela voz: o ler ou dizer em voz alta tem um papel crucial para quem ouve e para quem diz). E mais ainda o significado que Hamaguchi dá a esses momentos em que um personagem encara o outro e a si: o de uma transformação tão inexorável que, uma vez iniciada, não pode mais ser parada. É a vida, em suma — no espaço de alguns minutos.
Publicado em VEJA de 12 de janeiro de 2022, edição nº 2771
*A Editora Abril tem uma parceria com a Amazon, em que recebe uma porcentagem das vendas feitas por meio de seus sites. Isso não altera, de forma alguma, a avaliação realizada pela VEJA sobre os produtos ou serviços em questão, os quais os preços e estoque referem-se ao momento da publicação deste conteúdo.