A incumbência é desanimadora: veterano da Guerra Civil (1861-1865) que ganha a vida lendo notícias de cidadezinha em cidadezinha poeirenta do Texas, o Capitão Kidd (Tom Hanks) se vê responsável por levar a menina Johanna (Helena Zengel) para a casa dos tios, em 600 quilômetros de trilha ora deserta, ora frequentada por gente perigosa. Kidd não entende nada de crianças, e entende menos ainda de Johanna, que tem uns 10 anos e passou os últimos seis com os índios kiowa. Johanna não lembra de uma palavra sequer da língua materna (o alemão) nem dos pais — que viu serem mortos durante seu rapto. Não se lembra de ser qualquer outra coisa, enfim, que não kiowa. Está desesperada por ter sido arrancada de sua tribo; quando os vê passando ao longe, grita e chora para que venham buscá-la, mas eles não fazem caso: mantê-la em seu meio seria um convite a um ataque do Exército. De forma que Kidd terá de levá-la de volta aos brancos que ela não conhece e de que não gosta, no longo percurso geográfico e emocional que compõe o longa-metragem Relatos do Mundo (News of the World, Estados Unidos/China, 2020), já à disposição na Netflix.
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Adaptado pelo inglês Paul Greengrass do espetacular romance de 2016 da americana Paulette Jiles (sem edição brasileira), Relatos é menos áspero e vívido que sua fonte, mas não menos acurado nem menos envolvente — ou oportuno. Passado no período turbulento em que as tensões ainda à flor da pele da Guerra Civil se somavam a um pico no conflito entre os colonizadores e as tribos nativas, o filme amplia e modifica a visão que se tem desse cenário ao escolher um prisma incomum: o encontro entre um velho soldado a quem a guerra roubou qualquer ideia de um lar e uma das muitas crianças que, ao serem raptadas por uma das tribos das grandes planícies, deixavam-se absorver a ponto de, em questão de meses, apagarem da memória toda a vida pregressa. O título do filme se transforma, assim: não é só das notícias do mundo que segue adiante enquanto o Texas remói sua derrota que ele trata; é principalmente desse mundo ancestral que aos poucos se esgarça que ele quer falar.
Não por acaso, é depois de sobreviverem a um enfrentamento terrível que Kidd e Johanna pela primeira vez se sentem algo mais que companheiros acidentais: não apenas porque ele a defendeu e porque eles colaboraram, mas porque, sem nem perceber que o Capitão a observa, a menina canta uma canção em que exalta a bravura dele (o homem não entende as palavras, mas intui o sentido) e carimba suas mãos, com argila colorida, nos flancos dos cavalos. Na direção inspirada de Greengrass para essa cena, é como se um terceiro mundo — não o dele nem o dela, mas um mundo de ambos — se abrisse.
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Esse mundo é mais o desejo que Relatos expressa que um fato. Fossem brancas, negras ou mexicanas, quase todas as crianças raptadas por uma tribo assimilavam-se com velocidade espantosa, mesmo quando haviam testemunhado violência contra sua família. O fenômeno, aliás, corria em duas mãos: também a tribo deixava de ver nelas alguém vindo de fora. Dos poucos relatos confiáveis que restam (a ideia de uma criança branca preferir os “selvagens” à sua gente era um tabu), sabe-se que só à força os raptados deixavam os índios, e que em geral viviam até o fim dos seus dias infelizes e desajustados — além de ferozmente estigmatizados por seu jeito “estranho”. Alguns, como o também descendente de alemães Herman Lehmann, que ao se perder dos apaches fugiu para os comanches e lutou junto com eles contra os brancos, conseguiram fazer valer sua história. Outros, como Olive Oatman, célebre pela tatuagem no queixo que ganhou dos Mohave — um sinal de honraria —, a distorceram na tentativa de amenizar o estigma. Hoje, sabe-se que Olive teve várias chances de deixar os Mohave, mas nunca o fez. As Johannas de verdade, em suma, não encontraram um Capitão com quem pudessem fundar uma nova nação. Os votos de Relatos do Mundo são que os tão divididos americanos de hoje possam, um dia, fazê-lo.
Publicado em VEJA de 17 de fevereiro de 2021, edição nº 2725
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