Ontem vi o terceiro episódio da nova temporada de Demolidor e aquela tal cena que todo mundo anda comentando. Trata-se de um plano-sequência verdadeiramente ensandecido, que começa em um corredor e continua por vários andares de uma escadaria de emergência, sempre sem pausa e sem trégua, e com uma fúria tão densa que é quase palpável. É uma beleza como coreografia de ação: suja, seca, impulsiva, orgânica (o que significa que a coreografia, embora complicadíssima, não pode jamais parecer coreografia; o espectador tem que sentir que cada golpe está nascendo ali, daquele instante). E é exemplar também do ponto de vista de desenvolvimento do personagem: o Demolidor passou horas sendo provocado pelo Justiceiro, que argumenta que eles são ambos iguais; está no máximo da tensão moral e sob ameaça de um bando de malfeitores; e reage castigando inimigo após inimigo com uma violência instintiva e acachapante – que, embora necessária à sua sobrevivência, não deixa de confirmar o diagnóstico do Justiceiro a seu respeito. A ação, claro, é sempre muito melhor quando vem com um respaldo dramatúrgico forte. Mas quando ela é o elemento dramatúrgico central, a maneira mais direta de se conhecer um personagem – aí a força dela se multiplica exponencialmente.
E com quem os realizadores de Demolidor aprenderam a fazer a coisa assim tão bem? Com a mesma pessoa que, por vias diretas ou indiretas, é a inspiração de Zack Snyder para uma cena central de luta em Batman vs Superman. E que certamente está também na origem dos confrontos ultra-impactantes de Capitão América: O Soldado Invernal. E de quem James Bond vem tirando suas lições mais importantes desde Cassino Royale. Que tem a ver com a ação surpreendentemente revigorada de Duro de Matar 4.0 – e de centenas de outros filmes menos ilustres. Se foi rodado a partir de meados de 2004, é quase certo: é no trabalho revolucionário de Paul Greengrass que o diretor está se espelhando.
A Identidade Bourne, de Doug Liman, reembalou o filme de espionagem em um contexto mais pop. Mas, com A Supremacia Bourne e O Ultimato Bourne, de 2004 e 2007, o inglês Paul Greengrass reinventou a ação cinematográfica: transferiu-a para as entranhas menos fotogênicas dos cenários urbanos, transformou-a em algo sumamente urgente, em que o momento presente é tudo que conta, e livrou-a de vícios teatralizantes e dos artifícios para realçar (por exemplo, planos e contraplanos, tomadas de cobertura e tudo mais que interfira com a embolação naturalista da ação). Seu jeito de filmar é documental não só no estilo, mas também na maneira de organizar a filmagem: quase sempre no meio da rua, sem cordão de isolamento e sem interromper o trânsito de pessoas comuns, obrigando-se a reagir a circunstâncias imprevistas. Acima de tudo, Greengrass transformou a ação no centro dramatúrgico da série Bourne: o espião vivido por Matt Damon não sabe qual a sua verdadeira identidade nem com qual propósito foi treinado. Só o que ele sabe é aquilo de que seu corpo e seus reflexos se lembram; portanto, a maneira como ele age, luta e se move é a única maneira possível de vir a conhecê-lo.
Não é exagero dizer que nenhum cineasta influenciou mais outros cineastas na última década do que Paul Greengrass. As inovações que ele trouxe para a série Bourne foram tão atordoantes que é possível, inclusive, isolar o momento em que todo mundo teve a certeza de que estava vendo algo sem precedentes: a cena em que Matt Damon luta com Marton Csokas na sala de uma casa modernosa em Berlim (procure no YouTube por “The Bourne Supremacy fight scene”). É uma briga tão febril e tão visceral, e é filmada com uma proximidade tão perigosa, que o resultado não poderia ser outro: depois de a plateia ver algo assim, ela não vai mais acreditar em algo que não seja assim. A luta dura só 2 minutos – mas mudou a pancadaria no cinema e na TV para sempre.