Não há dúvida de que o apartamento que se vê em cena pertence ao homem que ali está: o gosto masculino e decidido, o ambiente que transpira hábitos há muito vividos — tudo é como que um reflexo de Anthony (Anthony Hopkins), que ainda irradia a racionalidade, a competência e a autoridade de que provavelmente desfrutou a vida inteira. Anthony, que Hopkins interpreta com formidáveis inteligência e desassombro, descarta impaciente as preocupações da filha e, para fazer pouco delas, faz pouco da própria Anne (Olivia Colman) e a fere com comentários maldosos. Anthony está marcando território, no sentido figurado e também no literal: pelo jeito como Anne entra no apartamento, pressente-se uma regularidade maior nas suas visitas; e, embora ela disfarce melhor do que muitos a apreensão, o pai é perceptivo demais para não se ressentir dela — porque, apesar de não admiti-lo nem para si mesmo, ele reconhece os sinais que Anne está detectando. Por exemplo, quando entra na sala de sua casa e encontra nela um estranho que diz ser seu genro e, em outra ocasião, outro estranho ainda, que alega o mesmo (mas Anne não está divorciada?, pergunta-se ele). Ou ainda quando sua casa lhe parece estranha, com móveis diferentes e paredes de outra cor — ou quando ela lhe parece exatamente igual, mas Anne afirma que é no apartamento dela que ele mora agora. Às vezes, nem Anne é a mesma: em algumas cenas, Olivia Williams toma o lugar de Olivia Colman. A insegurança de Anthony, enfim, é brutal. Como observou a VEJA o dramaturgo e diretor francês Florian Zeller (leia entrevista), é como se sua vida se tivesse transformado em um quebra-cabeça que nunca se encaixa.
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Também o espectador luta para montar as peças de Meu Pai (The Father, Inglaterra/França, 2020), em cartaz nos cinemas de algumas cidades e já disponível para compra nas plataformas NOW, Apple TV e Google Play (a partir do dia 28 de abril, ele pode ser alugado nessas plataformas e também na Sky Play e na Vivo Play). Adaptando uma peça de sua autoria e usando com proficiência notável um recurso tão simples quanto a decoração do set, o estreante em cinema Zeller faz do próprio filme uma manifestação da demência que acomete seu protagonista e à qual Anne assiste, aturdida e em sofrimento. Mesmo a sensação inicial de progressão da doença aos poucos se desfaz: Anthony não está migrando daquela zona crepuscular entre a lucidez e a confusão para uma fase mais profunda de deterioração mental — está em plena deterioração, e mesmo o que parece lúcido a ele e ao espectador pode não passar de mero eco, ou de uma peça posta em lugar falso.
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Se o cinema americano costuma adocicar ou pelo menos abrandar o tema da doença interjeitando nele possibilidades de reconciliação, lições de vida ou superação, o cinema europeu é em geral bem mais desenganado. Desde o título, Para Sempre Alice, que deu o Oscar de 2015 a Julianne Moore, partia da premissa comparativamente otimista de que algo da substância de sua protagonista resistia ao avanço do Alzheimer. Em contraste, Amor (2012), do austríaco Michael Haneke, não poupava os personagens de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva da extensão total dos efeitos da decrepitude.
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À sua maneira, Meu Pai é tão implacável quanto Amor. Em algum momento, o desfacelamento do pai torna impossível à filha encontrar terreno comum com ele, e é inevitável que eles se desprendam um do outro; o mito reconfortante de que há uma medida de paz na incompreensão que a demência traz desmorona com estrondo — ela não passa de um infinito de sombras, angústias e sobressaltos. E o golpe derradeiro, o não mais reconhecer-se, é avassalador em si, e mais ainda na atuação de Hopkins. “Eu não queria interpretar a confusão, mas sim a normalidade e a perversão dela: fazer café na cozinha, ligar o rádio como todos os dias, e então deparar com um estranho em minha casa, ou não mais reconhecer o lugar em que estou”, disse o ator a VEJA. Hopkins, de 83 anos, empresta ao personagem o próprio nome, a própria data de nascimento e a aura de infalibilidade que sempre o acompanhou, para então se dispor a reduzir tudo isso a nada. Não é só para grandes atores. É para os fortes.
Publicado em VEJA de 14 de abril de 2021, edição nº 2733
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