No cipoal às vezes indevassável das correlações políticas no Oriente Médio, um ramo brotado na década passada teve papel crucial em deter o avanço do Isis, ou Estado Islâmico, no território sírio: as YPG, ou “Unidades de Proteção do Povo”, braço armado do Partido da União Democrática Curda. Principais aliadas das forças americanas na Guerra da Síria, as YPG (que desde então foram abandonadas à própria sorte) arrancaram aos ultrafundamentalistas do Isis boa parte do terreno que eles controlavam no país, incluindo seu quartel-general, a cidade de Raqqa. Para tanto, tiveram a ajuda indispensável das YPJ, suas milícias femininas, odiadas em dobro pelo Isis, já que, nessa visão fanática, morrer pelas mãos de uma mulher fecha ao jihadista as portas do paraíso.
No auge da guerra, as YPJ ganharam a atenção ocidental pelo seu destemor e por esse elemento tido como exótico, mas que derivava de uma necessidade muito palpável: perseguidas como etnia, e prestes ainda a cair sob a insana lei religiosa do Isis, as mulheres curdas viram por bem pegar em armas. São elas o foco principal de No Man’s Land (França/Israel/Bélgica, 2020), cujo primeiro episódio acaba de estrear no Starzplay. Ou deveriam ser. Ao contrário de produções mais contundentes, como a sueca Califado, a série fica indecisa entre o autêntico e o familiar e adentra as YPJ por meio do protagonista de praxe — um homem europeu.
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Antoine (Félix Moati), um jovem engenheiro parisiense, sente o chão fugir de seus pés ao assistir a um noticiário sobre as milícias curdas na Síria: ele poderia jurar que a figura lá ao fundo é sua irmã, a arqueóloga Anna (Mélanie Thierry), dada como morta alguns anos antes em um atentado a bomba no Egito. Os pais e a namorada de Antoine acham que ele está descompensando; o corpo de Anna foi identificado pelo DNA e pela arcada dentária, e não há a menor chance de que ela ainda esteja viva. A culpa pelos acontecimentos que levaram Anna a romper com a família e ir para o Cairo, porém, pesa sobre Antoine — que, em um repente, manda-se para a Turquia, e de lá para a Síria, seguindo as pistas da mulher que acredita ser sua irmã.
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Capturado por uma YPJ sob suspeita de ser apoiador do Isis, Antoine aos poucos vence a desconfiança das milicianas. Mais: como os outros europeus e americanos que lutam como voluntários junto delas, vai se enamorando de sua causa (e também de uma guerrilheira, Sarya, interpretada pela ótima Souheila Yacoub). Como o próprio espectador, porém, ele nem sempre sabe qual fio puxar nessa meada complexa, na qual se emaranham ainda um agente que pode ou não ser da Inteligência britânica (James Purefoy) e um trio de rapazes ingleses, dois deles de origem muçulmana, que aderiram fanaticamente ao Isis.
No panorama geral, No Man’s Land (ou “terra de ninguém”, como se designa a zona entre duas trincheiras inimigas) quer, e muitas vezes consegue, argumentar sobre a diferença nem sempre clara entre ter uma causa a defender e ser uma pessoa vulnerável ao recrutamento. Mas é pena que se preocupe muito mais com Antoine e Anna que com os outros personagens, e que use as YPJ como não muito mais que moldura para o drama deles. Esquecidas pelos ciclos do noticiário, elas são relembradas aqui — mas como coadjuvantes de um thriller, e não protagonistas de uma guerra.
Publicado em VEJA de 2 de dezembro de 2020, edição nº 2715
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