Narcos – A Terceira Temporada: Escobar faz falta?
Não, não faz: com Pedro Pascal e o cartel de Cáli se enfrentando, a série vive alguns dos seus melhores momentos
Com a morte do megatraficante Pablo Escobar num telhado de Medellín no encerramento da segunda temporada, Narcos foi posta sob dúvida: a série resistiria à ausência de seu protagonista carismático (para o mal, mas carismático assim mesmo) e do intérprete dele, Wagner Moura? Li comentários negativos ou desapontados quando esta terceira temporada entrou na grade da Netflix, em 1º de setembro. Mas, tendo chegado ao final dela, discordo. Na verdade, a nova leva prova que, apesar das aparências, o personagem de Escobar nunca foi o pilar nem o motor da série – foi apenas o condutor, numa etapa inicial, da autópsia que o produtor José Padilha faz da fragilidade de boa parte dos países latino-americanos frente ao assédio incessante do populismo, da corrupção, do crime (que se organiza com agilidade infinitamente superior à das instituições) e das muitas outras mazelas típicas do continente. Na segunda temporada, Narcos se deteve sobre os efeitos da miséria, do atraso e da falta de perspectiva por meio do sensacional personagem de Limón (Leynar Gomez), um taxista informal cooptado por Escobar como seu capanga – e o único a ficar devotadamente ao lado do “patrão” até o último instante. Nesta nova temporada, a série cai com fúria sobre a venalidade política, em todas as suas facetas. E elas são tão tantas que chegam a dar vertigem.
Como Javier Peña, o agente da DEA (a agência antidrogas americana) que foi essencial para a captura e morte de Escobar, o chileno Pedro Pascal já vinha ganhando um bocado de espaço na segunda temporada – e continua a segurar as pontas com garra; não é acaso que Casal tenha se tornado um ator tão requisitado nos últimos anos. Lá no começo da série, Peña era um sujeito meio pândego, mas Pascal o foi transformando no personagem mais intenso e complicado de Narcos. O agente da DEA joga com qualquer um (inclusive com esquadrões da morte e traficantes em ascensão) para atingir seus fins – antes, capturar Escobar, e agora, capturar os chefões de Cáli. Mas é um desencantado; sabe que seus fins, por mais relevantes que pareçam, nunca são o fim de coisa nenhuma. No narcotráfico, o jogo está sempre recomeçando, com novos jogadores, novas táticas, novos extremos de selvageria. Peña tem nojo de si, tem nojo de como faz seu trabalho, e tem mais nojo ainda do mal que combate – de onde continua a combatê-lo, e a aguentar o desânimo crescente.
Morto Escobar, imediatamente o jogo passou a ser apitado pelos “cavalheiros de Cáli”, que de cavalheiros, claro, não têm nada, mas gostam de se chamar assim porque seus métodos empresariais modernos contrastam com o estilo traficante-ostentação do agora finado Escobar. Teoricamente sócios igualitários, os irmãos Gilberto (Damián Alcázar) e Miguel Rodríguez (Francisco Denis), seu centro-avante nova-iorquino Chepe Santacruz (Pêpê Rapazote) e seu capitão colombiano Pacho Herrera (Alberto Ammann) são tão brutais quanto Escobar, mas dão muito menos na vista: Gilberto, o cérebro do negócio, prefere a diplomacia ao massacre. Ou, quando a diplomacia falha, prefere ocultar os cadáveres a alardeá-los, como fazia Escobar. Gilberto sabe que o tráfico não é ofício para a vida toda, e está tratando de legimitizar os negócios; já fechou um acordo com o governo colombiano para se entregar dentro de seis meses (durante os quais pretende lucrar ao máximo), por penas bem brandas, só para satisfazer a opinião pública. Esse é o acordo que Peña quer desconsiderar, por achá-lo escandaloso. Mas por que a embaixada americana em Bogotá, a CIA, o ministro da Defesa colombiano etc. etc. desconversam quando Peña expõe a necessidade de apreender os cavalheiros de Cáli, ou mesmo tratam de atrapalhar deliberadamente a DEA? Para quem acompanha o noticiário brasileiro, por exemplo, as respostas não vão causar grande espanto. Embora devessem.
Já a maneira como a terceira temporada se desenrola, esta surpreende várias vezes. A direção continua sólida, uma combinação de câmera documental com narrativa de suspense. Há cenas de arrepiar até para o padrão de uma série realista sobre o narcotráfico, e personagens intrigantes como o de Pacho Herrera, um sujeito abertamente gay e tão insanamente apavorante que ninguém ousa dar um pio quando, num bordel cheio de inimigos, ele tira um rapaz para dançar coladinho com ele. E, de novo, um personagem aos poucos migra das margens do enredo para o seu centro: agora, em vez de Limón, tem-se o número 2 da segurança do cartel, Jorge Salcedo (o ótimo Matias Varela), um homem bom que deu um mau passo. Ex-militar e engenheiro que faliu na tentativa de montar uma indústria de biodiesel, Salcedo há alguns anos aplica sua mente analítica e seu temperamento meticuloso à tarefa de tornar o cartel e seus integrantes indevassáveis. É ele, na verdade, o idealizador do extraordinário programa de vigilância conhecido como “KGB de Cáli”, em homenagem dúbia mas sincera à agência soviética de espionagem. Discreto e contido, respeitoso mas não servil, e tão crédulo na sua distância da parte suja do serviço que nunca porta armas nem comete qualquer violência, Salcedo está para deixar o cartel e montar uma empresa de segurança no exato dia em que Gilberto Rodríguez anuncia o plano que obrigará à sua permanência no emprego por mais seis meses (uma das coisas que o espectador logo percebe é que não se diz “não” a Miguel Rodríguez, o irmão ressentido, taciturno e mal resolvido de Gilberto). Salcedo desmorona por dentro; não suporta mais a convivência com o narcotráfico, e já não consegue fingir para si mesmo que é diferente dos seus empregadores.
Mais até do que o Limón da segunda temporada, tão carente de afeto e tão desprovido de opções na vida – e portanto presa tão fácil para Escobar –, Jorge Salcedo me encheu de amargura. De que forma uma pessoa como ele justifica tal escolha? É provável que haja muito mais formas do que sou capaz de imaginar: esse é o ponto central da terceira temporada de Narcos – a maneira como a corrupção generalizada e institucionalizada cria oportunidades para o que é absolutamente imoral parecer relativamente aceitável. (A meu ver, aliás, Narcos desde o início fala do que aconteceu na Colômbia para tratar do que se passa no Brasil.) Para salvar sua família e também para se redimir dos quatro anos a serviço dessa gente hedionda, Salcedo toma um caminho desesperado. Mas o importante é que toma um caminho. É uma nota modesta de otimismo dentro do pessimismo inevitável de Narcos, mas ela está lá: mesmo quando é tardíssimo, ainda assim não é tarde demais para parar de compactuar com o que é errado e degenerado.
Em tempo, aliás: muito bom o gancho para a quarta temporada, que vai se passar em outras paragens mas novamente terá à sua frente Javier Peña, o homem viciado em combater as drogas.