Um ex-policial com tino para os negócios, um matuto com talento para a botânica e uma estufa improvisada num quintal de uma casa qualquer na província atrasada de Sinaloa: assim, nos anos 80, começou uma história que, nesta altura, já deixou pelo caminho meio milhão de mortos. O excelente Narcos: México pega essa história desde seu começo – que parece quase ingênuo e romântico, como naqueles filmes em que o sujeito que até ali vem dando com a cara na parede tem um súbito momento “eureka!” e inventa o post-it, ou o McDonalds. No caso, Rafael Caro Quintero (Tenoch Huerta) inventa a sinsemilla, ou “sem semente”, um cultivo de cannabis só de plantas fêmeas, bem mais forte e com muito menos entulho vegetal. Um quilo de sinsemilla traz muito mais dinheiro que um quilo de maconha “suja”. Miguel Ángel Félix Gallardo (Diego Luna), ex-policial e amigo desde sempre de Rafa, sabe que, no mercado de drogas, esse é um eureka e tanto. Suficiente para que os dois virem empreendedores de fato e escapem de Sinaloa, onde a polícia e os “federales” vivem queimando as plantações de maconha dos agricultores pobres para fingir que estão combatendo o narcotráfico. Para obter a bênção do chefe do tráfico em Sinaloa (e do governador da província), carregam consigo um sujeito velho de guerra, Don Neto (o extraordinário Joaquin Cosío), que tem o respeito dos chefes de outras regiões.
Até aí, essa é uma história de esperteza e de engenhosidade, e sobre o sonho de ser alguém. Mas, com a mesma dedicação narrativa vista nas três temporadas passadas na Colômbia, Narcos: México a vai desdobrando e aprofundando em todas as repercussões e nos níveis insuportáveis de violência que ela logo atinge. Achei que, como brasileira que todo dia encontra no noticiário um novo escândalo de corrupção ou um novo caso de selvageria inimaginável, seria difícil me assustar. Enganei-me. Narcos: México me deixou de cabelo em pé. Pela intensidade brutal da corrupção mexicana e porque a série vem com uma promessa implícita, a de que se um dia alguém abrir a caixa-preta das relações entre as facções criminosas e as várias esferas políticas brasileiras, aí é que vamos ver o que é pesadelo de verdade. Essa, enfim, é sempre a pior parte de Narcos: não é invenção. Em geral, aliás, é uma atenuação; em dez episódios veem-se alguns exemplos apenas das torturas, das mutilações em vida e das decapitações com que os carteis mexicanos asseguram a sua lei particular. As outras 499 990 ou 499 980 ficam subentendidas.
Essas duas dezenas, porém, já bastam, e Narcos: México é uma série com inteligência de sobra para fazer com que elas contem para o espectador e pesem nele. Pesem mais, até, do que antes, porque Narcos: México não tem uma figura extravagante como a de Pablo Escobar, que foi o foco das duas primeiras temporadas de Narcos e cuja ferocidade exuberante se presta ao folclore. Félix Gallardo parte do mesmo ponto que Escobar – uma situação de inferioridade que atormenta o seu ego –, mas ele é em todo o resto uma criatura muito diversa. Na interpretação excelente de Diego Luna, feita só de semitons, Félix é um jogador de pôquer: o barato dele é “ler” os outros jogadores para, mesmo quando não tem as melhores cartas, levar a mesa. A violência faz parte do jogo, mas ter que recorrer a ela meio que o ofende, porque Félix gosta de impressionar os outros pela habilidade. (A qual pode se expressar, às vezes, com um assassinato à queima-roupa, em público, como numa cena bem do começo da temporada que é um blefe de gênio.) De posse da sinsemilla, que começa a plantar num trecho gigantesco de de deserto (Rafa procura um geólogo para descobrir onde o lençol d’água é mais próximo da superfície), Félix reúne os donos de cada uma das “praças” de tráfico do México para propor um consórcio com sede em Guadalajara: todos vão vender sinsemilla valendo-se de um esquema articulado de distribuição; ninguém vai ser o chefe (como se); todos vão ficar milionários. Narcotraficantes nem sempre são tipos razoáveis que jogam bem em equipe, mas Félix primava pela racionalidade e pela capacidade de orquestrar arranjos complicados, de forma que o consórcio se afinou e expandiu sua atividade em escala imprevista.
Até esse momento, os agentes da DEA, a agência americana antidrogas, estacionados em Guadalajara estão assistindo a tudo resignados. A corrupção mexicana atravessa todas as esferas e é comandada de cima, por gente ligada ao PRI (Partido Revolucionário Institucional, que ficou no poder ininterruptamente de 1929 a 2000). A primeira coisa que todo traficante faz é pagar pela proteção da polícia secreta, e com o consórcio não é diferente; e a polícia secreta é que garante que os traficantes joguem pelas regras que interessam ao poder. Os quatro diretores que se alternam na direção dos dez episódios são todos nomes que se destacam na encenação desse tipo de trama como um corpo a corpo feroz, repleto de tensão: o mexicano Alonso Ruizpalacios de (Museu), o americano Josef Kubota Wladyka (de Mãos Sujas), o catalão Amat Escalante (de Heli) e o colombiano Andrés Baiz (de O Quarto Secreto).
Ocorre que, em 1981, transferiu-se para Guadalajara um certo Kiki Camarena (Michael Peña), um agente turrão e que, como cidadão americano nascido no México, horrorizou-se com o que encontrou pela frente – a escalada do tráfico, a corrupção governamental e policial, e a inação da DEA e da Embaixada Americana. Michael Peña, muito bem no papel, apenas sinaliza aquilo que o identifica com Félix, esse sentimento mortificante de que o México e os mexicanos estão saindo mal na foto. (O que cada um deles entende por sair bem na foto é, claro, completamente diferente.) O que Camarena quer é, sozinho se for preciso, consertar o país. Quer tanto que consegue tocar fogo nos outros agentes da DEA e tirá-los de sua complacência. (A contribuição de Camarena a essa história é de fato central – mas se dá por vias que o espectador não imagina.) A essa altura, entretanto, as apostas já ficaram bem mais altas, porque Félix enxergou o óbvio. Com a DEA e o governo colombiano partindo pesado para cima dos cartéis de cocaína, o México tem algo valioso a oferecer aos cocaleiros: sua eficientíssima rede de distribuição. Traficar coca e traficar maconha, porém, são coisas muito, muito, muito diferentes, e agora é que o negócio fica sério. E é agora, também, que personagens que vinham caminhando juntos, como Félix, Rafa e Don Neto, começam divergir em questões não só de ordem prática, como de natureza existencial mesmo.
Narcos e Narcos: México não são séries sobre violência, embora contenham grande quantidade dela. Tratam antes de mais nada daquilo que existe de mais fascinante – pessoas, e como em maior ou menor escala cada uma delas tenta moldar o mundo conforme o que são e o que desejam. Roberto Saviano, o autor de Gomorra e grande conhecedor dos métodos das máfias italianas, definiu Pablo Escobar como o Copérnico do tráfico: Escobar foi o primeiro a postular que não é a cocaína que tem de girar em torno dos mercados, mas os mercados que têm de girar em torno da cocaína. Pela mesma lógica, Ed Vulliamy, um estudioso do tráfico na fronteira México-Estados Unidos, define Félix Gallardo como o Henry Ford ou o Bill Gates do tráfico: o homem que, inovando no produto, na manufatura e na distribuição, reformatou os mercados e o consumo. Camarena não foi um construtor de impérios, como eles, nem tampouco Don Neto. Mas também eles perpetraram ações que, em momentos-chaves, alteraram o enredo que Félix planejara para si. As pessoas empurram o mundo, e o mundo, ou o destino, ou os deuses, as empurram de volta: é a síntese da tragédia, no sentido grego do termo (e por isso Narcos tem sempre um narrador contando e comentando a história em um extenso voice-over; ele faz as vezes do coro da tragédia grega. Aliás, só na última cena da temporada é que o espectador descobre quem é o narrador de Narcos: México). No caso de Narcos e Narcos: México, esse destino que resiste aos personagens e brinca com eles ou às vezes, por capricho, os favorece, é o continente em que elas se passam.
Ao fim e ao cabo, Narcos e Narcos: México são séries sobre as mazelas do subdesenvolvimento. Por exemplo, sobre vibrar de inteligência, iniciativa e ambição e não ter nada no horizonte que permita dar um proveito útil a essas qualidades. Sobre ter à disposição um suprimento inesgotável de gente em péssimas condições materiais ou de instrução, e portanto facilmente recrutável para a violência e a ilegalidade. Sobre sociedades viciadas no patrimonialismo, em que até um emprego é visto não como direito, mas como um favor pelo qual se deve subserviência a alguém. Sobre Estados que não têm nenhuma concepção do valor da vida dos seus cidadãos – e por que então se esperaria que quem é assumidamente bandido o tivesse? (Na segunda temporada de Narcos, o motorista Limón resume tudo isso maravilhosamente em uma só personagem.) E são séries também sobre geopolítica: se nos Estados Unidos, na Dinamarca ou no Leblon é possível cheirar pó ou fumar um baseado sem imaginar o pântano de violência e corrupção do qual eles vêm – e decididamente não interessa ao narcotráfico que seus consumidores pensem no que estão financiando quando fumam ou cheiram –, a demanda está garantida, e uma demanda sempre vai produzir uma oferta. Enquanto isso, aquela conta de meio milhão de assassinatos – isso só no México – vai correndo. Mas números são uma abstração. Narcos e Narcos: México os devolvem à sua dimensão vertiginosa, a das pessoas que integram a soma.