‘Jojo Rabbit’: filme ousa combinar comédia e Holocausto
O diretor Taika Waititi consegue o impossível: fazer humor e comover com a história de um pequeno nazista que tem Adolf Hitler como seu amigo imaginário
Johannes Betzler, ou Jojo, de 11 anos, tem uma cara esperta e um dentinho torto que é uma graça, e está na idade em que tudo é um jogo — inclusive o acampamento para crianças da Juventude Hitlerista, onde ele se lança com entusiasmo às tarefas de odiar judeus, treinar com armas, queimar livros e saudar os oficiais (entre os quais o capitão caolho que não erra um tiro, interpretado pelo infalível Sam Rockwell). Por causa de uma valentia mal calculada, porém, Jojo (o fabuloso Roman Griffin Davis) se estropia; convalescendo em casa, é obrigado a remoer o fim de seu sonho de se tornar o melhor nazista que já se viu. Sua mãe, Rosie (Scarlett Johansson), é um encanto, mas vive pela rua, fazendo sabe-se lá o quê. Seu pai sumiu há dois anos; sua irmã morreu; seu amigão Yorki (Archie Yates) não tem tempo para ele. Resta a Jojo, então, apenas seu amigo imaginário Adolf.
Mas, embora naturalmente sopre ideias detestáveis nos ouvidos do menino, esse Hitler é de fato o devaneio de uma criança: folgazão e desengonçado, ele brinca e pula e morre de ciúme de Elsa (Thomasin MacKenzie), a adolescente que o garoto descobre escondida em um nicho atrás da parede de sua casa — e que, cool como ela só, zomba das batatadas em que Jojo acredita (“Onde a rainha-mãe dos judeus põe seus ovos?”, ele quer saber). Dirigido pelo neozelandês Taika Waititi e competindo por seis Oscar neste domingo, 9, Jojo Rabbit (Nova Zelândia/Estados Unidos/República Checa, 2019), já em cartaz no país, integra o grupo minúsculo de filmes que ousam combinar comédia e Holocausto — e o faz com uma doçura, um atrevimento e uma inventividade irresistíveis para a parte da plateia que não rejeite de imediato a proposta.
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Se o humor abranda algo do horror, ele pode entretanto ser mais demolidor que o drama. Encarnando ele próprio o Hitler imaginário de Jojo, Waititi compõe a base medrosa, regressiva e egoísta sobre a qual se assenta a personalidade do ditador. Filho de mãe judia e pai maori e um criador muito afeiçoado ao desconcertante (são dele o pseudodocumentário O que Fazemos nas Sombras e o escrachado Thor: Ragnarok), o diretor pega ainda uma página da cartilha do Monty Python na maneira como se vale do nonsense para ao mesmo tempo expor e ridicularizar o fetichismo e o homoerotismo que marcam o culto a Hitler, a atrofia emocional de quem se fixa nesse tipo de figura de autoridade e a ignorância que a crença no ideário nacional-socialista requer (a australiana Rebel Wilson, mestre em se fazer de sem-noção, fica com as piadas mais ultrajantes, na escala do Borat de Sacha Baron Cohen).
Mas, ao contrário do sucesso A Vida É Bela (leia o quadro), no qual o italiano Roberto Benigni cortejava o ofensivo ao sugerir que seria possível esconder de uma criança o horror do campo de concentração à sua volta, Waititi abdica de qualquer fantasia que não aquela que brote da cabeça de seu protagonista, e não o poupa do curso terrível dos acontecimentos. Mergulhado na infância e muito pequeno para entender as perdas que sofreu, ainda assim Jojo vai ter de crescer sozinho, amparado apenas em Elsa (tanto ela o atormenta que, claro, ele cai de paixonite). Crescer, aqui, também no sentido figurado: na cena final, Waititi pega o espectador de surpresa com uma beleza fulminante, e lembra que ainda há coisas no mundo em que, sim, é possível acreditar.
Publicado em VEJA de 12 de fevereiro de 2020, edição nº 2673
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