‘Inventing Anna’: como uma golpista enganou a elite de Nova York
Enquanto ia pendurando a conta, a personagem da minissérie da Netflix convencia os altos estratos nova-iorquinos de que era uma milionária herdeira alemã
A certa altura, ficou claro que havia contas não pagas, cheques sem fundo, dívidas vencidas, transferências fraudulentas e calotes girando por Nova York como um redemoinho. O centro dele: Anna Delvey, de 26 anos, até ali conhecida pelos altos círculos de Manhattan como uma jovem alemã não muito simpática mas muitíssimo bem relacionada — e herdeira de um fundo pessoal no valor de 60 milhões de euros. Mas, quando a minissérie da Netflix Inventando Anna (Inventing Anna, Estados Unidos, 2022) começa, ela está a caminho da detenção em Rikers Island, sem direito à fiança: a juíza botou o olho nela fazendo cara de enfastiada, ouviu a Promotoria sobre as suas trapaças para levar uma vida no luxo e avaliou que a moça miúda, algo pálida, de longos cabelos arruivados (isso até perderem as luzes de 800 dólares) e óculos de armação preta e pesada, marca Céline, decididamente não era alguém em quem se deveria confiar.
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Não faltou, porém, quem acreditasse em Anna, porque só gente com fundos ilimitados mora em hotéis da moda e volta para eles, todos os dias, com um carregamento de sacolas de grifes caríssimas — ou descansa em iates em Ibiza, reserva uma vila particular com mordomo no La Mamounia de Marrakesh a diárias de 7 000 dólares e consegue que pessoas como o arquiteto Gabriel Calatrava, filho do legendário Santiago Calatrava, o restaurateur Richie Notar, do afamado Nobu, e Andy Lance, um dos advogados mais experientes do ramo imobiliário, embarquem no projeto de restaurar por 40 milhões de dólares um edifício histórico de Nova York para transformá-lo em um clube/hotel/centro de artes batizado com o nome da idealizadora. A atriz Anna Chlumsky leva muito traquejo ao papel da jornalista da New York Magazine (aqui, Manhattan Magazine) que farejou que a história da socialite presa era muito maior e mais bizarra que parecia, e é no perfil publicado por ela em 2018 que a minissérie em parte se baseia. Como a protagonista da trama, Julia Garner crava no alvo a combinação desconfortável de calculismo e devaneio, e de indiferença e carência, e só não está tão sensacional quanto em Ozark porque o roteiro não se compara — antes a produção de Shonda Rhimes tivesse invertido as proporções de, digamos, 30% O Lobo de Wall Street e 70% de Emily in Paris que exibe aqui.
Apesar da fortuna de supostos 60 milhões de euros, Anna botara 62 000 dólares de despesas no cartão de uma amiga que ganhava menos do que isso em um ano. Ela nunca dava gorjetas menores do que 100 dólares, mas acabara trancada para fora de seu quarto, sem acesso à sua bagagem, neste, naquele, e em outro hotel porque nenhum de seus cartões passava e nenhum de seus prometidos depósitos chegava. Anna ficara de pagar o jato particular usado para ir a uma conferência do megafinancista Warren Buffett, mas dera o chapéu. Inúmeras vezes pendurara a conta de restaurantes caríssimos nos convivas e fugira do acúmulo de fiados nas lojas que frequentava. Ninguém realmente estranhava: os muito ricos têm o luxo adicional da excentricidade e, afinal, quando se tem tanto dinheiro, é fácil perder a trilha dele, certo?
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Mesmo quem nunca perde a trilha — o sistema financeiro — chegou a perdê-la. Anna depositava cheques sem fundos e sacava milhares de dólares sobre eles antes que voassem de volta, e ainda assim dois pedidos de empréstimo feitos por ela, um de 22 milhões de dólares e outro de 35 milhões, foram levados muito a sério até serem retirados pela própria pleiteante: a última etapa seria a verificação in loco dos bens e valores dados como garantia. Ou seja, na Alemanha, onde os emissários dos bancos descobririam que Anna não era Delvey, mas sim Sorokin, nascida na Rússia e radicada com pais de classe média no interior rural alemão. Fortuna, fundo, herança — nada disso jamais existira. Era tudo fabricação de Anna. Como ela mesma, aliás. Ou não: talvez ela tivesse só se tornado a pessoa que imaginava ser, a Anna Delvey que sabia de cor o quem é quem de Nova York e, mais importante, estava incluída nele. Solta da primeira condenação após quatro anos e presa de novo em semanas — cortesia agora da Imigração americana —, Anna está fora da própria festa.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2022, edição nº 2776
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