Enquanto os dois policiais interrogam os familiares do morto, o detetive particular Benoit Blanc se mantém em silêncio, oculto nas sombras — mas, no exato momento em que a história do depoente atinge o que Benoit julga ser uma mentira crucial, ele soa uma nota aguda no piano ao seu lado. Para cada interrogado, uma única nota, econômica e precisa, em perfeito contraste com os modos e o fraseado floridos com que Benoit então se apresenta, tendo já tirado o rebolado à filha mandona (Jamie Lee Curtis) do falecido, ao marido dela (Don Johnson), à nora viúva (Toni Collette) e ao filho incompetente (Michael Shannon). Só não se submetem ao ritual o neto Ransom (Chris Evans), porque ele é temperamental e não quis dar as caras, e Marta (Ana de Armas), a tímida e meiga enfermeira do finado autor de mistério Harlan Thrombey (Christopher Plummer), porque é sabido que ela sofre de uma aflição peculiar: se uma mentira passa pela boca de Marta, esta é imediatamente seguida pelo conteúdo do estômago da jovem. A morte de Thrombey foi declarada suicídio, mas Benoit tem lá suas dúvidas sobre o veredicto do legista — mais ainda porque o escritor era milionário e seus parentes são, sem exceção, bajuladores e aproveitadores. Não pode haver ferramenta melhor para um investigador do que uma pessoa como Marta, fisiologicamente incapaz de dizer inverdades, e Benoit pretende tirar tanto partido dela quanto possível.
Tirar todo o partido de uma boa oportunidade é também o que faz Daniel Craig em Entre Facas e Segredos (Knives Out, Estados Unidos, 2019), já em cartaz no país. A alguns meses de estrelar sua derradeira aventura no papel de James Bond em 007 — Sem Tempo para Morrer, o ator inglês aproveita para lembrar ao público que nem de longe está em fim de carreira. Ao contrário, pode muito bem estar no começo de uma nova parceria com um personagem excelente. Craig compõe Benoit Blanc como sua própria e colorida versão de um cavalheiro sulista tão arguto que nem se incomoda em ser subestimado, e que usa os ternos afetados de tweed e o sotaque rebuscado (um ótimo truque, já que Craig não tem grande ouvido para falas regionais) para criar a imagem de alguém que se acha mais do que é e, assim, induzir os adversários a baixar a guarda. Saboroso, divertido e repleto de notas calorosas, seu desempenho além disso se casa à perfeição com o da cubana Ana de Armas, de Bata Antes de Entrar e Blade Runner 2049 — e, mais ao ponto, também de Sem Tempo para Morrer, em que ela voltará a contracenar com Craig como o primeiro nome feminino do elenco.
O verdadeiro engenho por trás das reviravoltas precisas de Entre Facas e Segredos, entretanto, é o do diretor e roteirista Rian Johnson, que, às vésperas da estreia do capítulo final de Star Wars, troca as impressões dúbias deixadas por seu comando do episódio anterior da saga por um novo e convidativo cartão de visita. Em sua ainda enxuta carreira, Johnson se dividiu entre o crime ou o noir (A Ponta de um Crime, de 2005, e Vigaristas, de 2008) e a ficção com ação (Looper — Assassinos do Futuro, de 2012, e Star Wars: os Últimos Jedi, de 2017). Aqui, porém, ele para de flertar com gêneros para investir tudo no whodunit (“quem matou”) à moda de Agatha Christie. Parte homenagem, parte sátira respeitosa mas inteligente, o filme é inteiro um acerto.
Publicado em VEJA de 18 de dezembro de 2019, edição nº 2665
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