Em ‘Cry Macho’, Clint Eastwood faz mais um belo exame da moral masculina
Um durão falido e um garoto fogem da brutalidade no novo filme do cineasta de 91 anos
![GALOS DE BRIGA - Clint com Minett, o garoto a ser resgatado: domados pelo poder civilizatório feminino -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/09/ABRE-FILME-CRY-MACHO-05.jpeg.jpg?quality=90&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
Não há como não admirar a disposição física e mental que permite a Clint Eastwood continuar dirigindo e atuando aos 91 anos — e também não há como não reconhecer que, em idade tão avançada, cada novo filme pode ser o último. Clint não é de forma nenhuma um ingênuo; sabe que está em um último ato. E, ainda que ele venha se provando extraordinariamente longo e produtivo, é dessa forma que ele o tem encarado desde uma das guinadas mais espetaculares já vistas em qualquer carreira no cinema, aquela assinalada por Os Imperdoáveis, de 1992: como o trecho da vida em que o crescimento moral depende não só do que ainda se pode aprender, mas também do que se deve desaprender. E quanto antes se comece a deixar pelo caminho os valores que não têm valor real, melhor, defende ele em Cry Macho — O Caminho para a Redenção (Cry Macho, Estados Unidos, 2021), que estreia nos cinemas na quinta-feira 16.
Ex-caubói de rodeio e criador de cavalos falido, Mike Milo (o próprio Clint) deixa seu rancho no Texas, onde vive encharcado em bebida e amargura, para pagar uma dívida de gratidão: Howard Polk (o astro country Dwight Yoakam), o único homem que o ajudou, tem no México um filho de 13 anos que é vítima ora de abandono, ora de abuso nas mãos de uma mãe dissoluta. Polk tem pendengas além da fronteira e não pode cruzá-la; caberá ao já bastante alquebrado Milo, portanto, resgatar Rafa (Eduardo Minett). Mas, criando-se sozinho nas ruas para se manter longe da mãe, e metido em contravenções e rinhas de galos — “Macho” é o seu campeão —, Rafa não é de dar confiança a qualquer um, e costuma confundir virilidade com valentice e beligerância. Mas é também ainda uma criança, cheia de mágoa com o pai, que há anos o deixou para trás. Velho demais para se ver com os capangas da mãe de Rafa e não sendo uma sumidade em matéria de psicologia infantil, Milo não tarda a fazer o que tem feito na maior parte da vida: desiste da missão. A missão, entretanto, não desiste dele, levando o velho caubói e o menino em uma trilha difícil por estradinhas poeirentas.
A mise en scène de Cry Macho é singela; não tem o impacto de Sniper Americano, por exemplo, ou o controle virtuosístico de Sully — O Herói do Rio Hudson. É nessa simplicidade quase caseira, porém, que reside o sentido do filme. Milo e Rafa aprendem alguma coisa na jornada cheia de percalços, mas aprendem muito mais numa parada que é uma espécie de oásis na rota de fuga e na vida deles mesmo. Escondidos de seus perseguidores em um vilarejo, eles fazem amizade com a dona de um restaurantezinho, uma viúva que cria as netas. Marta (Natalia Traven) cuida deles, e eles se esforçam para cuidar dela também, e de si mesmos.
Milo arruma um bico adestrando cavalos e ensina Rafa a montar, em preparação para a rotina no rancho do pai. Rafa suaviza os modos na companhia das meninas; Milo ajuda na cozinha, conserta uma coisa ou outra e faz olhos compridos para Marta, que faz olhos compridos para ele; como ele tem jeito com animais, logo a cidadezinha o unge seu veterinário informal. Não só os vínculos em comunidade têm o dom de situar e abrandar esses homens que não sabem encontrar lugar no mundo: acima de tudo, as mulheres é que exercem aqui seu poder civilizatório. Em Cry Macho, virilidade e masculinidade equivalem a assumir responsabilidade pelo que se fez e faz — e começam por apreciar as mulheres, colaborar com elas e ter prazer na sua convivência. Essa é a nova chance que o filme dá aos seus dois protagonistas, enfim: a de escapar de um mundo regido pela brutalidade para ingressar em um outro, no qual nutrir e propiciar são as balizas.
Nos filmes das três últimas décadas, Clint várias vezes já inverteu os sinais da sua persona icônica (confira no quadro abaixo) para repudiar a erosão provocada pelo exercício da violência, a equiparação corrupta entre vingança e justiça, e a ignorância do racismo e do preconceito. No seu ethos, aliás, nada é mais condenável do que não arcar com as consequências das próprias decisões e projetar a culpa em outras pessoas ou circunstâncias; essa é a raiz da qual nascem todas as pequenas e grandes falências morais. Inversamente, a cada filme ele reafirma a importância da experiência, da competência e da ética, a necessidade de viver para o futuro e a beleza transformadora do amor paterno. Quase sempre, porém, são figuras filiais femininas que deflagram a reorganização de valores dos seus protagonistas — a boxeadora de Menina de Ouro, a filha preterida de A Mula, a jovem vizinha imigrante de Gran Torino. Colocar Rafa, um menino, sob a tutela do velho Milo é um lance de grande significado. Clint não quer que o seu mundo apenas seja sacudido; ele faz votos de que muitos outros homens experimentem desde cedo as felicidades desse chacoalhão.
REVISTO E MELHORADO
Alguns dos temas e valores que Clint Eastwood examinou e reexaminou em seus filmes ao longo das três últimas décadas
![FILME-UNFORGIVEN-1992-07.jpg OS IMPERDOÁVEIS (Unforgiven, 1992) -](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/09/FILME-UNFORGIVEN-1992-07.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
OS IMPERDOÁVEIS (Unforgiven, 1992)
Premido pela pobreza, um velho pistoleiro sai da aposentadoria para vingar uma prostituta mutilada por um cliente: na guinada de sua carreira, Clint repudia a cultura da violência glorificada pelo cinema e expõe a erosão ética e moral que ela engendra
![FILME-MYSTIC-RIVER-03.jpg SOBRE MENINOS E LOBOS (Mystic River, 2003)](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/09/FILME-MYSTIC-RIVER-03.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
SOBRE MENINOS E LOBOS (Mystic River, 2003)
Um ato inenarrável separa três amigos na infância, molda a vida de cada um deles dali em diante e, décadas depois, volta a devastá-los: adaptando um romance de Dennis Lehane, Clint disseca os círculos trágicos criados pela falsa justiça da vingança
![FILME-MILLION-DOLLAR-BABY-03.jpg MENINA DE OURO (Million Dollar Baby, 2004)](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/09/FILME-MILLION-DOLLAR-BABY-03.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
MENINA DE OURO (Million Dollar Baby, 2004)
Todos os dias o treinador expulsa de seu ginásio a aspirante a boxeadora pobre, e todos os dias ela volta, até vencê-lo pelo cansaço e por um amor paterno e filial genuíno — tema constante de Clint, que lembra aqui que só o tem quem se arrisca a perdê-lo
![FILME-GRAN-TORINO-1.jpg GRAN TORINO (2008)](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/09/FILME-GRAN-TORINO-1.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
GRAN TORINO (2008)
Um velho operário despreza os filhos sedentários, as noras consumistas, os netos frívolos e, sobretudo, os vizinhos asiáticos — mas, nesta demolição do racismo e do preconceito, é neles que vai descobrir uma ética em comum e encontrar a família que desejava
![FILME-SULLY-2016-04.jpg SULLY (2016)](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2021/09/FILME-SULLY-2016-04.jpg.jpg?quality=70&strip=info&w=1024&crop=1)
SULLY (2016)
Em 15 de janeiro de 2009, menos de cinco minutos após a decolagem, o piloto Chesley “Sully” Sullenberger III salvou 155 vidas ao fazer um pouso de emergência no Rio Hudson, em Nova York. Clint examina aqui a natureza da competência, experiência e disciplina
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755
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