Em ‘Cry Macho’, Clint Eastwood faz mais um belo exame da moral masculina
Um durão falido e um garoto fogem da brutalidade no novo filme do cineasta de 91 anos
Não há como não admirar a disposição física e mental que permite a Clint Eastwood continuar dirigindo e atuando aos 91 anos — e também não há como não reconhecer que, em idade tão avançada, cada novo filme pode ser o último. Clint não é de forma nenhuma um ingênuo; sabe que está em um último ato. E, ainda que ele venha se provando extraordinariamente longo e produtivo, é dessa forma que ele o tem encarado desde uma das guinadas mais espetaculares já vistas em qualquer carreira no cinema, aquela assinalada por Os Imperdoáveis, de 1992: como o trecho da vida em que o crescimento moral depende não só do que ainda se pode aprender, mas também do que se deve desaprender. E quanto antes se comece a deixar pelo caminho os valores que não têm valor real, melhor, defende ele em Cry Macho — O Caminho para a Redenção (Cry Macho, Estados Unidos, 2021), que estreia nos cinemas na quinta-feira 16.
Ex-caubói de rodeio e criador de cavalos falido, Mike Milo (o próprio Clint) deixa seu rancho no Texas, onde vive encharcado em bebida e amargura, para pagar uma dívida de gratidão: Howard Polk (o astro country Dwight Yoakam), o único homem que o ajudou, tem no México um filho de 13 anos que é vítima ora de abandono, ora de abuso nas mãos de uma mãe dissoluta. Polk tem pendengas além da fronteira e não pode cruzá-la; caberá ao já bastante alquebrado Milo, portanto, resgatar Rafa (Eduardo Minett). Mas, criando-se sozinho nas ruas para se manter longe da mãe, e metido em contravenções e rinhas de galos — “Macho” é o seu campeão —, Rafa não é de dar confiança a qualquer um, e costuma confundir virilidade com valentice e beligerância. Mas é também ainda uma criança, cheia de mágoa com o pai, que há anos o deixou para trás. Velho demais para se ver com os capangas da mãe de Rafa e não sendo uma sumidade em matéria de psicologia infantil, Milo não tarda a fazer o que tem feito na maior parte da vida: desiste da missão. A missão, entretanto, não desiste dele, levando o velho caubói e o menino em uma trilha difícil por estradinhas poeirentas.
A mise en scène de Cry Macho é singela; não tem o impacto de Sniper Americano, por exemplo, ou o controle virtuosístico de Sully — O Herói do Rio Hudson. É nessa simplicidade quase caseira, porém, que reside o sentido do filme. Milo e Rafa aprendem alguma coisa na jornada cheia de percalços, mas aprendem muito mais numa parada que é uma espécie de oásis na rota de fuga e na vida deles mesmo. Escondidos de seus perseguidores em um vilarejo, eles fazem amizade com a dona de um restaurantezinho, uma viúva que cria as netas. Marta (Natalia Traven) cuida deles, e eles se esforçam para cuidar dela também, e de si mesmos.
Milo arruma um bico adestrando cavalos e ensina Rafa a montar, em preparação para a rotina no rancho do pai. Rafa suaviza os modos na companhia das meninas; Milo ajuda na cozinha, conserta uma coisa ou outra e faz olhos compridos para Marta, que faz olhos compridos para ele; como ele tem jeito com animais, logo a cidadezinha o unge seu veterinário informal. Não só os vínculos em comunidade têm o dom de situar e abrandar esses homens que não sabem encontrar lugar no mundo: acima de tudo, as mulheres é que exercem aqui seu poder civilizatório. Em Cry Macho, virilidade e masculinidade equivalem a assumir responsabilidade pelo que se fez e faz — e começam por apreciar as mulheres, colaborar com elas e ter prazer na sua convivência. Essa é a nova chance que o filme dá aos seus dois protagonistas, enfim: a de escapar de um mundo regido pela brutalidade para ingressar em um outro, no qual nutrir e propiciar são as balizas.
Nos filmes das três últimas décadas, Clint várias vezes já inverteu os sinais da sua persona icônica (confira no quadro abaixo) para repudiar a erosão provocada pelo exercício da violência, a equiparação corrupta entre vingança e justiça, e a ignorância do racismo e do preconceito. No seu ethos, aliás, nada é mais condenável do que não arcar com as consequências das próprias decisões e projetar a culpa em outras pessoas ou circunstâncias; essa é a raiz da qual nascem todas as pequenas e grandes falências morais. Inversamente, a cada filme ele reafirma a importância da experiência, da competência e da ética, a necessidade de viver para o futuro e a beleza transformadora do amor paterno. Quase sempre, porém, são figuras filiais femininas que deflagram a reorganização de valores dos seus protagonistas — a boxeadora de Menina de Ouro, a filha preterida de A Mula, a jovem vizinha imigrante de Gran Torino. Colocar Rafa, um menino, sob a tutela do velho Milo é um lance de grande significado. Clint não quer que o seu mundo apenas seja sacudido; ele faz votos de que muitos outros homens experimentem desde cedo as felicidades desse chacoalhão.
REVISTO E MELHORADO
Alguns dos temas e valores que Clint Eastwood examinou e reexaminou em seus filmes ao longo das três últimas décadas
OS IMPERDOÁVEIS (Unforgiven, 1992)
Premido pela pobreza, um velho pistoleiro sai da aposentadoria para vingar uma prostituta mutilada por um cliente: na guinada de sua carreira, Clint repudia a cultura da violência glorificada pelo cinema e expõe a erosão ética e moral que ela engendra
SOBRE MENINOS E LOBOS (Mystic River, 2003)
Um ato inenarrável separa três amigos na infância, molda a vida de cada um deles dali em diante e, décadas depois, volta a devastá-los: adaptando um romance de Dennis Lehane, Clint disseca os círculos trágicos criados pela falsa justiça da vingança
MENINA DE OURO (Million Dollar Baby, 2004)
Todos os dias o treinador expulsa de seu ginásio a aspirante a boxeadora pobre, e todos os dias ela volta, até vencê-lo pelo cansaço e por um amor paterno e filial genuíno — tema constante de Clint, que lembra aqui que só o tem quem se arrisca a perdê-lo
GRAN TORINO (2008)
Um velho operário despreza os filhos sedentários, as noras consumistas, os netos frívolos e, sobretudo, os vizinhos asiáticos — mas, nesta demolição do racismo e do preconceito, é neles que vai descobrir uma ética em comum e encontrar a família que desejava
SULLY (2016)
Em 15 de janeiro de 2009, menos de cinco minutos após a decolagem, o piloto Chesley “Sully” Sullenberger III salvou 155 vidas ao fazer um pouso de emergência no Rio Hudson, em Nova York. Clint examina aqui a natureza da competência, experiência e disciplina
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755
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