Durante suas seis temporadas no ar, entre 2010 e 2015, Downton Abbey foi mania, vício e tópico constante de conversa. Hábil no teor e no ritmo do melodrama, emoldurada por figurinos e cenários de babar e apoiada no fascínio pela pompa do Império Britânico (que resiste até hoje, um século após ele começar a desmoronar, para quem é súdito da Coroa e mais ainda para quem não é), a série criada pelo roteirista Julian Fellowes virou programa obrigatório em muitos círculos graças a um lance perspicaz: a vida dos aristocráticos Crawley, ocupantes da espetacular propriedade de Downton Abbey, era a novela que o batalhão de serviçais produzia e colocava em cena, por assim dizer, e então acompanhava com o suspense e a empolgação de quem assiste a um folhetim. Esse era, obviamente, o ponto de vista mais próximo do espectador, já que quase ninguém, hoje, pode imaginar o que é viver como viviam os fictícios Crawley nas primeiras décadas do século passado — nem sequer o conde e a condessa de Carnarvon, cuja família desde 1679 está no comando do castelo de Highclere, a locação da série. Dos jardins centenários aos móveis e tapetes preciosos, Highclere posa tal e qual de Downton Abbey (louças e cristais, pela fragilidade, não são cedidos). Mas os aposentos dos empregados no sótão e as áreas de serviço do porão tiveram de ser construídos em estúdio: haviam todos sido destinados a outros usos, porque há décadas o castelo já não mantém criadagem para preenchê-los.
E aí está a esperteza de Fellowes em Downton Abbey (Inglaterra, 2019), em cartaz no país: no filme derivado da série, também os Grantham provam do gostinho voyeurístico de espiar uma esfera inatingível quando o rei George V e a rainha Mary se hospedam em seu castelo. A distância entre patrões e empregados, assim, momentaneamente parece abreviada, e os personagens de “escada acima” e os de “escada abaixo” trepidam juntos — à exceção, claro, de Lady Violet Grantham, que nunca trepida e que, na interpretação da veterana Maggie Smith, continua a roubar a cena sem falha.
Em algum lugar do filme há um subtexto que comenta, de leve, outra novela, a da saída do Reino Unido da União Europeia — algo na linha de que os ingleses têm lá suas excentricidades e seus apegos, mas vêm superando crises há bem um milênio, e não vai ser agora (1927 no filme, 2019 nas entrelinhas) que irão sucumbir. Lady Mary (Michelle Dockery), a herdeira empreendedora, confere as contas da propriedade, olha os preparativos para a visita real e se pergunta se ainda faz sentido viver assim, fingindo que este mundo em vias de desaparecer é eterno — e conclui que sim, claro, ou aí é que este velho mundo sumiria de vez. Nem seria preciso dar esse aceno ao tumulto que corre, pois Downton Abbey foi sempre uma celebração do peculiar jeito britânico de ser e fazer.
Nunca faltaram a Fellowes, porém, empatia e conhecimento para tornar vívidas as aventuras e desventuras do andar de baixo. Aqui, os empregados põem suas diferenças — políticas, sobretudo — de lado para se unir contra um invasor: o exército de criados esnobes e prepotentes que a família real despacha antecipadamente. No conjunto, o filme não é nem menos nem mais do que um dos episódios esticados de Natal que fechavam cada temporada da série: um punhado de subtramas surge atadas ao fio principal e se resolve ali mesmo; velhos costumes são revisados e aprovados; e a harmonia por fim vigora — na tela, ao menos.
Publicado em VEJA de 30 de outubro de 2019, edição nº 2658