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‘Dois Papas’: a amizade imaginária entre Bento XVI e Francisco

No filme de Fernando Meirelles, o alemão e o argentino começam como sacerdotes em tudo opostos — e terminam como homens capazes de admirar-se mutuamente

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 jun 2024, 14h56 - Publicado em 6 dez 2019, 06h00
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  • “Sabe como um argentino se mata?”, pergunta Jorge. “Ele sobe até o alto do seu ego e se joga lá de cima.” Joseph ri uma risada sarcástica; não achou graça da piada enfiada no meio de uma discussão grave. Mais tarde, quando ele faz seu próprio esforço cômico e percebe que Jorge nem notou que se tratava de uma tirada, devolve: “É uma piada alemã; não precisa ser engraçada”. Durante um par de dias juntos, Jo­seph e Jorge vão contestar um ao outro, debater e trocar confissões. Vão também admirar a beleza da arte que os cerca, falar de futebol (assunto mundano demais para Joseph, porém seriíssimo para Jorge) e entreter-se ao piano com peças clássicas e velhas canções de cabaré. A certa altura, vão até rir espontaneamente das respectivas piadas: tão diferentes entre si quanto dois homens possam ser, e defensores de opiniões tão opostas quanto seja possível a dois sacerdotes da mesma Igreja, Joseph Ratzinger e Jorge Bergoglio terão afinal colhido o fruto do seu esforço intenso para ouvir um ao outro. “Não concordo com nada do que você diz, mas você é aquilo de que a Igreja precisa agora”, diz o alemão Ratzinger, então papa Bento XVI, para o argentino Bergoglio, hoje papa Francisco — o primeiro jesuíta e o primeiro sul-americano em dois milênios de tradição.

    Já em cartaz nos cinemas e disponível a partir do dia 20 na Netflix, que produziu o filme, Dois Papas (The Two Popes, Inglaterra/Estados Unidos/Argentina/Itália, 2019) imagina o encontro entre Ratzinger e Bergoglio (Anthony Hopkins e Jonathan Pryce, ambos soberbos) em momento de profunda ruptura para cada um deles, em 2013 — a decisão de Ratzinger de se tornar o primeiro papa em 700 anos a renunciar, e a tentativa de Bergoglio de abandonar o posto de cardeal e retornar às tarefas paroquianas. Ratzinger vê o pedido de Bergoglio com ambivalência: o cardeal argentino era então um dos críticos mais vocais ao conservadorismo de Bento XVI, e sua saída certamente seria vista como a mais contundente de todas as suas críticas — mas, por outro lado, evitaria a possibilidade real de que ele viesse a ser eleito papa no conclave seguinte.

    Também Bergoglio chega à residência de verão do papa, em Castel Gandolfo, cheio de ambiguidade. Seu respeito místico pelo ocupante do Trono de Pedro se mistura ao desgosto com a condenação incisiva de Bento XVI ao divórcio, à homossexualidade, ao aborto — e inversamente, com sua atitude leniente para com os escândalos de pedofilia e abuso sexual na Igreja. A oposição entre eles parece insuperável. Mas a necessidade de debater se impõe e, aos poucos, abre um caminho para que ambos compreendam as respectivas razões. A amizade que nasce daí não depende de afiliação religiosa e nem mesmo de fé para ser admirada; ela é, em si só, uma demonstração de grandeza.

    A rigor, tudo o que se vê em Dois Papas é especulação — mas especulação informada pelas numerosas manifestações públicas e formais dos dois pontífices, e tão bem escrita pelo roteirista Anthony McCarten, de A Teoria de Tudo e O Destino de uma Nação, que as interações entre os personagens irradiam autenticidade e plausibilidade. Conduzido por Fernando Meirelles com uma fluência discreta que busca sempre se colocar a serviço do trabalho de Anthony Hop­kins e Jonathan Pryce e valorizar a química fabulosa entre os dois atores, Dois Papas é cinema feito sem afetação, mas com interesse genuíno. Acertadamente, Meirelles investe muito mais na ideia de tolerância do que em questões de dogma ou doutrina: ainda que a missão da Igreja Católica seja o ponto que ao mesmo tempo une e separa Bento XVI e Francisco, o que está em pauta aqui não é o catolicismo. O que Hopkins e Pryce personificam é o desafio árduo mas excitante de procurar um bem maior a respeito do qual possam concordar.

    Ratzinger, o teólogo erudito e rigoroso que acredita que a Igreja deve remover o homem das vicissitudes do mundo material para conduzi-lo à espiritualidade, obriga-se a considerar a experiência dura de Bergoglio nesse dia a dia de que ele sempre manteve distância e a ponderar como a ditadura e as crises econômicas argentinas deram ao interlocutor uma nova perspectiva. E Bergoglio, o padre de passado polêmico que a duras penas foi se comprometendo com uma missão de solidariedade e humildade, precisa considerar os argumentos de Ratzinger sobre a dimensão espiritual necessária a um papado. O exercício é tão bem-sucedido que acabou por alterar toda a tônica do projeto: de mero antagonista, Bento XVI passou a ser também ele protagonista do filme de Meirelles (confira a entrevista com o cineasta). Dois Papas conquista pelo humor — mas permanece pela honestidade com a qual se obriga, também ele, a considerar todos os pontos de vista.

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    Publicado em VEJA de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664

     

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