Como filmava esse sujeito.
Não tem jeito: falou em David Lean, o que vem à mente é o épico dos épicos, Lawrence da Arábia – e então Doutor Jivago, e A Ponte do Rio Kwai. Todos esses filmes, e muitos outros, estão na mostra que o Centro Cultural Banco do Brasil já abriu em São Paulo (depois ela segue para Brasília e para o Rio).
E, se você não os viu, tem de vê-los com urgência, porque eles são sensacionais e porque há cinquenta anos, toda vez que um diretor abre uma vista de larguíssima escala, ele não tem como escapar (e em geral nem quer escapar) do vocabulário visual que o inglês Lean compôs. Um exemplo? O filme mais premiado de 2015 e o mais esperado do ano referenciam Lawrence – Mad Max: Estrada da Fúria e Star Wars: O Despertar da Força.
Mas Lean era um diretor especial porque trabalhava de forma exímia em duas escalas simultaneamente, a monumental e a íntima (e porque sabia tudo sobre fazer cinema). Antes de pôr em prática sua vocação para o épico, Lean despontou no cinema inglês do pré- e pós-guerra, cuja especialidade eram as “peças de câmara”, por assim dizer – dramas pessoais concentrados em um punhado de personagens. Lean foi o montador do soberbo Paralelo 49. Dirigiu um clássico do amor não realizado, Desencanto, e outro clássico sobre o amor que tenta se realizar, A História de uma Mulher. Fez a melhor de todas as adaptações do Grandes Esperanças de Charles Dickens.
Comentou sobre as imensas transformações na Inglaterra do entre-guerras através da história de uma única família, em Esta Nobre Raça. Falou do adultério de maneira libertária em A Filha de Ryan, um dos filmes favoritos da minha infância. Em 1962, lançou Lawrence da Arábia e mudou o cinema para sempre.
Para comemorar a mostra O Cinema Total de David Lean, então, aí vai um texto sobre Lawrence da Arábia e mais três notinhas sobre outros trabalhos dele publicadas na VEJA. E veja aqui a programação da mostra “O Cinema Total de David Lean” do CCBB.
O maior dos épicos.
Nenhum filme da era digital é páreo para Lawrence da Arábia, do diretor David Lean.
Há uma cena famosa no drama Crepúsculo dos Deuses em que a protagonista, uma estrela decadente, diz: “Eu ainda sou grande. Os filmes é que ficaram pequenos”. Pois é essa a sensação que se tem ao ver Lawrence da Arábia – a de que o cinema encolheu terrivelmente nas últimas décadas. E não só porque há muito se aposentou o formato 65 milímetros, tão grande que o espectador só percebia as bordas da tela com a visão periférica. Encolheram também a imaginação e a ambição, qualidades em que o diretor inglês David Lean era recordista. Numa época em que nem sequer a palavra “digital” era usada, quanto mais os recursos que ela propicia, Lean filmou durante quase 300 dias na Jordânia e em outras locações para criar as mais fascinantes imagens do deserto já vistas no cinema. Só pela sua imensidão é que se pode medir a estatura do protagonista do filme: o inglês T.E. Lawrence, que na I Guerra conseguiu o feito de reunir sob seu comando árabes de tribos diversas contra o domínio turco na região.
Lean era, à sua moda, tão audacioso quanto Lawrence. Ele abre o filme com a morte do personagem e, a partir dela, reconstitui sua trajetória. Lawrence era um inglês que se sentia mais à vontade em trajes de beduíno, um humanista que comandava batalhas sangrentas e um homossexual que, ao que se sabe, nunca assumiu nem consumou sua opção. Lean, contudo, não tem interesse em desconstruir esse mito. Prefere alimentá-lo, até deixar claro que nem Lawrence sabia muito bem quem era. Essa é uma das razões pelas quais o filme é ainda hoje tão rico. Interpretações fáceis da história tendem a envelhecer.
Quando Lawrence morreu, em 1935, muitos falaram em filmar suas memórias, Os Sete Pilares da Sabedoria. Vários roteiros chegaram a ser escritos, mas nenhum vingou. Os obstáculos pareciam intransponíveis. Quem se atreveria a deslocar centenas de técnicos, atores e figurantes para paisagens tão hostis? Lean, contudo, agarrou a chance de se apresentar para a tarefa. Embalado pelo sucesso de A Ponte do Rio Kwai, de 1957, ele achou que tinha cacife para propor a idéia. A produção em si foi uma operação de guerra. Nos papéis principais, de Lawrence e de seu amigo árabe Sherif Ali, o diretor colocou os então desconhecidos Peter O’Toole, que vinha do teatro, e Omar Sharif, famoso só em seu Egito natal. Na retaguarda, contudo, tinha verdadeiras fortalezas, como Alec Guinness, Anthony Quinn e José Ferrer. Sua equipe técnica também incluía alguns dos mais talentosos veteranos do cinema. Sem o diretor de fotografia Freddie Young, por exemplo, Lawrence da Arábia poderia ter sido um pesadelo. Os problemas surgiam sem parar. Desde o negativo que borbulhava dentro da câmara, por causa do sol inclemente, até as dunas e planícies que tinham de ser varridas, para que a areia parecesse virgem. As tomadas monumentais exigiam cálculos geométricos complicadíssimos – e é bom notar que, na época, o visor das câmaras não mostrava com exatidão o que estava sendo registrado. A inventividade dos tenentes de Lean, contudo, rendeu cenas antológicas, como aquela em que Sharif surge no horizonte como se fosse uma miragem. Para guiar o olho do espectador até aquele pontinho na tela, pintou-se uma faixa branca na areia, com centenas de metros de extensão, na sua direção. O efeito é imperceptível, mas decisivo.
Os atores, por sua vez, tinham outras dores de cabeça. O’Toole, Sharif e Quinn passaram meses cavalgando camelos – sempre sob um calor que atingia os 50 graus e montados em animais cobertos de pulgas. Sharif conta que, todos os dias, quando tirava sua túnica preta, ela estava branca por dentro, tanto era o sal que perdia com a transpiração. Lean era um diretor implacável. Mesmo que os intérpretes estivessem sendo mostrados a quilômetros de distância, ele não permitia que fossem substituídos por dublês, como é comum hoje. Na célebre seqüência do ataque à cidade de Ácaba, a excitação que se vê nos olhos deles é mais do que verídica: atrás dos atores vinha uma tropa de beduínos em disparada, todos empunhando sabres, e qualquer acidente seria fatal.
Situações como essa, é verdade, não são incomuns em produções de tal calibre. Lawrence da Arábia é considerado o maior épico do cinema não só porque é monumental, mas principalmente porque Lean soube imprimir a ele uma escala humana. Seu bom gosto o impelia sempre à discrição – no uso esparso dos elementos de cena, na música sugestiva de Maurice Jarre ou nos diálogos enxutos do roteirista Robert Bolt. Por isso seus 215 minutos passam tão rápido. Vale lembrar que essa é a duração da versão restaurada em 1989. Para aumentar o número de sessões nos cinemas, o filme sofreu sucessivos cortes à época de seu lançamento. Vê-lo ou revê-lo na íntegra é uma experiência imbatível. Até porque nunca se fará nada igual. Numa entrevista no DVD que está sendo lançado, o diretor Steven Spielberg pondera que hoje Lawrence da Arábia não sairia por menos de 285 milhões de dólares – e aí a tentação de usar efeitos digitais, mais baratos do que uma filmagem “na raça”, mas menos convincentes, seria irresistível. Ainda que houvesse tanto dinheiro, contudo, faltaria o essencial: David Lean, que morreu em 1991, pouco mais de um ano depois de ver seu filme finalmente montado da maneira que concebera.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 25/04/2001
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Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2001
Trailer
LAWRENCE DA ARÁBIA(Lawrence of Arabia)Inglaterra, 1962Direção: David LeanCom Peter O’Toole, Omar Sharif, Anthony Quinn, Alec Guinness, José Ferrer, Claude Rains, Arthur Kennedy
Doutor Jivago
(Doctor Zhivago, Estados Unidos, 1965)
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 13/02/2002
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2002
Passagem para a Índia
(A Passage to India, Inglaterra/Estados Unidos, 1984)
Nos anos 20, a inglesa Adela vai para a Índia casar-se com um juiz do Império Britânico. Lá chegando, quebra o protocolo ao aceitar o convite de um jovem médico indiano para visitar as cavernas da região. A moça sai das cavernas em pânico, acusando o médico de ter tentado estuprá-la. E, embora tudo obviamente não passe de uma alucinação sexual de Adela, só a sua futura sogra parece se chocar com a prontidão com que a comunidade britânica local abraça a farsa. O que, afinal, os ingleses estavam fazendo na Índia, e com a Índia, é o que indaga o escritor E.M. Forster no romance em que o filme se baseia. Em seu último trabalho, o diretor David Lean, de Lawrence da Arábia, transpõe essa inquietação para a tela com uma riqueza de nuances e um cuidado com as atuações que mais do que fazem valer as quase três horas de filme.
Isabela Boscov
Publicado originalmente na revista VEJA no dia 24/12/2003
Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A
© Abril Comunicações S.A., 2003
Paralelo 49
(49th Parallel, Inglaterra, 1941)
Extraviada no Canadá, a tripulação de um submarino alemão afundado passa por perigos e traições na tentativa de chegar até os Estados Unidos, ainda neutros nos conflitos da II Guerra Mundial. Terceira colaboração da emérita dupla formada pelo diretor Michael Powell e pelo roteirista Emeric Pressburger, e montado por David Lean, Paralelo 49 (o título é uma referência à latitude em que se localiza a fronteira entre Estados Unidos e Canadá) tem nomes ilustres no elenco, como o inglês Laurence Olivier, para melhor servir aos seus propósitos – foi encomendado como um filme de propaganda, para expor as vicissitudes dos nazistas e estimular os americanos a entrar na guerra. Acabou saindo um bocado melhor do que o previsto: trata-se, simplesmente, de um dos mais inteligentes e envolventes filmes do período.