Se você já teve um momento de ansiedade com o seu número de curtidas – ou de descurtidas – numa rede social, imagine como seria ganhar uma nota de 0 a 5 de cada pessoa com que você cruza na rua e no trabalho. Conhecidos, desconhecidos, tanto faz: o sujeito olhou para você, ele publica uma avaliação. Você olha para alguém, e faz o mesmo. Imagine mais: a sua média é atualizada segundo a segundo, e anda com você para onde você for. Todo mundo usa implantes de retina, e uma das funções deles é projetar a nota de cada indivíduo, bem visível, ao lado da testa dele. Imagine, então, se isso tivesse reverberações profundas não só sobre a sua autoestima, mas também sobre a sua vida prática do dia a dia. Parece tirania? E é. Bem-vindo ao futuro de Black Mirror: ele é quase igual ao presente – só que ainda mais complicado e, em geral, piorado.
Em novembro passado, fiz um post aqui no blog sobre essa estupenda série de ficção científica criada pelo inglês Charlie Brooker: eu tinha acabado de ver todos os sete episódios existentes até então (três em cada temporada, mais um especial de Natal) e estava de queixo caído com a imaginação e a audácia de Brooker. Se você ainda não viu, é hora de correr: o projeto foi encampado pela Netflix, e desde ontem há seis episódios inéditos disponíveis. O brilhante Perdedor, que eu descrevo acima, é um deles.
Black Mirror segue o formato de antologia. Cada episódio é uma história completa, com diretor, atores, ambientação e enredo diferentes. Em tese, portanto, não importa por qual temporada ou episódio você começa. Mas eu recomendo que você siga a ordem certa, porque algumas ideias vão sendo expandidas ou retrabalhadas de um episódio para outro. Ou seja: se você é novato em Black Mirror, pode ir ajeitando as almofadas do sofá, porque tem bem umas sete horas de programação pela frente antes de chegar à nova leva de histórias. Recomendo especialmente que você comece pelo primeiro episódio a ir ao ar na Inglaterra, em 2011, chamado The National Anthem (“O Hino Nacional”). É um choque do qual você não vai se esquecer tão cedo, e a porta de entrada certa para o mundo estranho de Charlie Brooker.
Todos os treze episódios produzidos até agora partem de uma mesma premissa: explorar os comportamentos que nascem de uma nova possibilidade tecnológica (que costuma ser um desdobramento ou uma sofisticação de uma tecnologia com a qual já convivemos). Na leva original de sete episódios, que foi produzida pelo Channel 4 inglês entre 2011 e 2014, havia especulações sobre trending, reality shows, o rastro digital que a gente vai deixando por aí, a formatação de programas conforme a reação em tempo real da audiência – e um, sensacional, sobre uma forma muito radical de bloquear alguém da sua vida. Eles eram todos incrivelmente incisivos e ousados – um desenvolvimento lógico levado às últimas consequências dos comportamentos que a gente já vem manifestando. Naquele post de novembro, defini assim: Black Mirror não tratava de realidade alternativa, mas sim de realidade extrema. Aliás, uma observação: em uma entrevista publicada ontem no UOL, Charlie Brooker frisou que a tecnologia não é a vilã de suas histórias. E não é mesmo. A questão de que ele trata são as maneiras que encontramos de nos servir das evoluções tecnológicas – e essas maneiras não raro aprofundam ou amplificam as nossas falhas, fraquezas e mesquinhezas tipicamente humanas.
Esta nova meia-dúzia de histórias, porém, é um pouco mais mansa. Em parte porque quase todas as tramas especulam sobre um avanço que ainda está nos primeiros passos e não é tão presente no dia a dia – a “realidade aumentada”. Até agora, o exemplo inevitável de uma camada virtual sobre a realidade concreta é o Pokémon Go, que não chega a disparar alarmes sobre o labirinto em que talvez estejamos nos enfiando. De outra parte, acho que Charlie Brooker e sua colaboradora, a produtora Annabel Jones, sentiram um pouco a pressão de migrar do Channel 4 inglês para uma plataforma global como a Netflix. Bem entendido, essa é uma hipótese minha. Mais cautela, mais humor e narrativas mais acessíveis, contudo, seriam reações naturais à perspectiva de saltar de um nicho para uma audiência maciça. É uma ideia que mexe com a cabeça de um criador. Sem problema: apesar de ter ficado um tiquinho menos contundente, Black Mirror continua mexendo com a minha cabeça.