Lá pelo final de Orgulho e Preconceito, Jane Austen escreve que “a visita foi um deleite; perfeita, em sendo tão curta” (“It was a delightful visit; perfect, in being much too short”). Ou seja, mais não é melhor; e venda suas ações na alta, não na baixa. No livro, com essa frase tão simples (e de uma elegância sem rival), Austen quer dizer um milhão de coisas. Só para começar, quer mostrar como as irmãs Jane e Elizabeth e seus respectivos Mr. Bingham e Mr. Darcy estão embriagados de paixão às vésperas de se casarem. Sendo muito cínica, sugere também que um menor tempo de exposição equivale a menores chances de decepção – e deixa cair um lembrete de que, quando estiverem casados e tiverem todo o tempo do mundo juntos, os dois casais não mais sentirão esse tipo particular de excitação. Outros tipos, talvez, mas não esse. Pego a frase emprestada de Austen porque ela resume meus sentimentos sobre a segunda temporada de Big Little Lies: quando a primeira temporada terminou, eu achei que queria muito uma outra – mas estava enganada, porque mais de uma coisa boa não necessariamente é melhor e porque, em vez de sair na alta, Big Little Lies deixou para sair na baixa, quando já tinha se tornado pálida. Ou, muito pior, mediana. Meryl Streep pôs peruca e dentadura, arregaçou as mangas e tratou de ser uma sogra de pesadelo; Laura Dern deu um espetáculo; Reese Witherspoon de novo foi a âncora de todo o elenco. Não bastou: a direção de Andrea Arnold ficou muito aquém da de Jean-Marc Vallée, e o roteiro frequentemente decepcionou. Agora, em vez de lembrar de Big Little Lies como aquela minissérie que me tirou o chão, vou lembrar dela como aquela série que perdeu o pé.
Atenção: spoilers
Esticar adaptações de livros para além daquilo que foi escrito originalmente – ainda que com o apoio e a ajuda do autor – é uma proposição arriscada. Em Game of Thrones, quase causou revolução popular. Em The Handmaid’s Tale, a segunda temporada se safou graças à decisão muito lúcida de transferir parte do foco para a personagem de Serena Joy e suas interessantíssimas contradições (ainda não vi a terceira). Em Big Little Lies, a coisa toda desmontou: se a primeira temporada usava o artifício da investigação criminal para se infiltrar na vida secreta das protagonistas e pôr o espectador no lugar de cada uma delas, esta segunda temporada faz o contrário: finge que está mergulhando ainda mais fundo nas insatisfações da “cinco de Monterey” para na verdade seguir alguns misteriozinhos de segunda. Bonnie (Zoë Kravitz) vai desmoronar com a culpa de ter empurrado Alexander Skarsgard para a morte? Vai aproveitar o derrame de sua mãe tirana para dar cabo dela, como cogita nos seus devaneios? Ed (Adam Scott) vai se separar de Madeline (Reese Witherspoon), agora que sabe que ela o traiu com outro? Jane (Shailene Woodley) vai superar o trauma do estupro e ficar com Corey (Douglas Smith)? E Mary Louise (Meryl Streep), a sogra mesquinha, invejosa e ardilosa, vai conseguir tirar de Celeste (Nicole Kidman) seus filhos?
Enquanto ainda era uma minissérie, Big Little Lies brilhou justamente por não se render à pressão dos enredos solucionáveis. Ela se movia à base das implosões internas das personagens, que eram fortes o bastante para alterar a paisagem sem que se detectasse precisamente sua origem. Era, enfim, uma história de repercussões, e de como estas poderiam – ou não – empurrar as personagens para outras ações, ou outros lugares. Nesta temporada, o único enredo que faz jus a essa filosofia e satisfaz na medida esperada é o da falência da estridente Renata, que Laura Dern interpreta com brilhantismo. Renata se fez sozinha na vida, é podre de rica e adora sua fortuna; o marido dela acaba de jogá-los na rua da amargura. O administrador da falência tira a ela até o relógio que ela está usando na audiência e a aliança de casamento (depois devolvida por ser item de valor também sentimental). A casa fabulosa está à venda, a babá está pedindo uma fortuna de indenização (pelos serviços de babá e por certos serviços extras), o marido continua brincando de trenzinho (verdade). Renata está com tanta, mas tanta raiva que até a sua formidável capacidade de dar piti não lhe está sendo suficiente. Essa é a beleza da situação: o fato de que Renata está de mãos atadas e não pode fazer nada. Pode apenas ser Renata e achar um jeito de caber dentro de si mesma.
Em contraste, todos os outros enredos desta temporada querem levar de um ponto A a um ponto B. O ponto A já é em si problemático. Ainda que faça sentido explorar a maneira como as cinco mulheres envolvidas na morte de Perry, o marido violento interpretado por Alexander Skarsgard, convivem com esse peso, o espectador é obrigado a aceitar que elas foram unidas pelo seu segredo e tornadas por ele fortemente solidárias. É o último cenário em que eu pensaria; em geral os segredos – ainda mais os assim tão graves – dividem, contrapõem e antagonizam as pessoas fadadas a guardá-los. Também a condução do ponto A aos pontos B não segue trajetos muito críveis. O mais esburacado deles é justamente o que deveria ser o melhor: a história de como a sogra Mary Louise se imiscui na vida da nora Celeste com o pretexto de ajudá-la com os filhos gêmeos nesse período de luto mas, todo o tempo, está cuidadosamente tentando isolá-la das amigas e tramando contra ela. Meryl Streep está tão bem no papel que ando até duvidando de que vá conseguir olhar para a cara dela de novo; sua Mary Louise é uma pessoa detestável e um estudo de como, na raiz de cada homem péssimo, com frequência está a mãe que fez dele o que ele é. Mary Louise teve um outro filho, que morreu em um acidente de carro no qual ela estava ao volante. Perry, o menino que então se tornou filho único, virou, em adulto, comprovadamente um estuprador e um espancador de mulheres – mas, quando Mary Louise impetra uma ação judicial para tirar de Celeste a guarda de seus filhos, ninguém levanta a questão da competência dela para criar os gêmeos até o último instante do processo, numa cena lacrimosa em que Celeste defende a si mesma no tribunal e põe a roupa suja de Mary Louise para lavar. E, depois de tudo que essas cinco passaram no decorrer desta temporada, bem no momento em que elas estão de posse de suas frágeis conquistas, vem aquela cena final. A qual não passa de um gancho para uma terceira temporada que, a prevalecerem alguma sanidade e respeito, não deveria de forma nenhuma acontecer. Essa visita foi, no princípio, um deleite – mas aí se estendeu até todos os defeitos do visitante ficarem bem aparentes.