Não há como explicar: às vezes, parece que um anjo se põe no set de um filme para fazer com que não só tudo dê certo, mas ganhe também um toque especial de graça (no sentido maior da palavra). Desde o título, Benzinho, dirigido por Gustavo Pizzi e escrito em parceria com a atriz principal – sua ex-mulher, Karine Teles –, é uma conjunção feliz de ideias, tom e atores. Karine faz Irene, que, junto com o marido Klaus (Otávio Müller), cria os quatro filhos em Petrópolis, numa casa que está caindo aos pedaços de maneira quase cômica: a torneira arrebenta e encharca a pizza do jantar, a porta não abre mais e o jeito é entrar e sair pela janela. De lá, eles precisam dar uns passos apenas até a casa em que sonham morar – não fosse faltar dinheiro para terminar a obra (e para tudo mais). De forma que, na casa velha de colônia na serra fluminense, apinham-se Irene, Klaus (que mal para ali, tentando tocar sua loja quase falida), o mais velho Fernando (Konstantinos Sarris), o do meio, Rodrigo (Luan Teles) e os gêmeos pequenos (interpretados por Arthur e Francisco, filhos de Karine e Gustavo), mais Sônia (Adriana Esteves), a irmã de Irene, que foi se refugiar ali com o filho do marido violento (Cesar Troncoso). Repentinamente, Irene fica sabendo que um pouco de espaço vai se abrir: Fernando, que tem uns 16 anos e joga handebol no colégio, ganhou uma bolsa para estudar e jogar na Alemanha, e tem de embarcar dentro de vinte dias. E, claro, esse é exatamente o tipo de espaço que Irene não quer ganhar; só a ideia da partida (e dos preparativos para o adeus, que incluem emancipar legalmente o menino) já a põe louca.
E, em suma, é isso: uma pequena crônica das tribulações de viver em família, de tocar o dia a dia (Irene e Sônia vendem quentinhas e roupa de cama comprada no atacado), de achar um meio-termo com o marido meio ausente e meio sonhador, de avançar um pouco (Irene orgulhosamente acaba de se diplomar no segundo grau), de conseguir pôr as crianças para dormir, de resistir a vender a casinha de praia onde todo ano se vive um mês de respiro – e de se conformar com a perspectiva de se apartar, antes da hora, de um filho. Sobretudo, é uma reflexão – uma afirmação, até – de como essas coisas todas que se encara como o ruído do cotidiano são na verdade a substância verdadeira da vida e o espaço em que ela realmente se realiza: não nos poucos grandes acontecimentos, mas nos inumeráveis e facilmente desprezados pequenos instantes. Quem algum dia viu um filme do mestre japonês Yasujiro Ozu (por exemplo, Pai e Filha, ou Era Uma Vez em Tóquio), ou ainda de seu discípulo Hirokazu Koreeda (Pais e Filhos, Nossa Irmã Mais Nova, O que Eu Mais Desejo), vai reconhecer em Benzinho uma afinidade espiritual, digamos assim: uma chamada a que se esteja presente no momento, e que se desfrute do que há de difícil nele com a mesma acolhida ao que ele possa ter de positivo ou prazeroso.
Feito em família e entre amigos (Müller e Mateus Solano, que interpreta o técnico de handebol enfezado de Fernando, são amizades de longa data), e ambientado na cidade em que Karine nasceu (e que preserva encantos esquecidos e adoráveis como desfile de banda), Benzinho tem a qualidade inimitável das coisas conhecidas e vividas – e a interação entre o elenco, incluindo-se aí todas as crianças e adolescentes, é de uma naturalidade e uma confiança que me deixaram espantada. Não que Karine Teles e Gustavo Pizzi se fiem só nessa conjunção astral favorável. Benzinho é, mais do que tudo, primorosamente bem escrito e dirigido, e depura em uma aparente simplicidade algo sumamente complicado, mas que todo mundo, de um jeito ou de outro, tem que fazer: o negócio de atravessar de um dia para o outro, todos os dias.
Trailer
BENZINHO (Brasil/Uruguai, 2018) Direção: Gustavo Pizzi Com Karine Teles, Adriana Esteves, Otávio Müller, Konstantinos Sarris, Luan Teles, Mateus Solano, Arthur Teles Pizzi, Francisco Teles Pizzi, Cesar Troncoso Distribuição: Vitrine |