10 Anos de “O Cavaleiro das Trevas”: o maior e melhor
Pessimista, devastador, magnífico: o segundo filme da trilogia de Chris Nolan vai perdurar como um marco do cinema contemporâneo
Quase deixei passar, mas ainda dá tempo: esta semana, no dia 18 de julho, completaram-se dez anos do lançamento de Batman – O Cavaleiro das Trevas. Reveja, e fique de queixo caído de novo. Com o Coringa de Heath Ledger como uma força da destruição em seu centro, o segundo filme da trilogia de Christopher Nolan é uma erupção de originalidade, audácia e brilhantismo técnico e narrativo. (Vale lembrar também que, com todo o seu niilismo, ele passou de 1 bilhão de dólares na bilheteria, o que então era uma façanha.) Cavaleiro é também, uma criação que vai bem além de si mesma: foi ele que libertou o filme de super-herói da forma dos quadrinhos e deu ao gênero a liberdade criativa (e o prestígio) que ele usufrui hoje. Desde que Cavaleiro das Trevas estreou, em 2008, por algum motivo obscuro formou-se por aí uma corrente de haters de Christopher Nolan. Pessoal, na boa: cresçam e apareçam.
Leia a seguir a resenha que publiquei na ocasião do lançamento do filme nos cinemas:
Direto do coração das trevas
Como o Coringa, Heath Ledger é o que o novo Batman tem de mais excitante – e de mais devastador
“Esta cidade merece criminosos melhores”, diz o Coringa, desdenhando dos que o precederam na missão de flagelar Gotham. E isso, de fato, é o que Batman – O Cavaleiro das Trevas tem a oferecer – não só o melhor vilão de todas as adaptações dos quadrinhos para o cinema, como também, mais propriamente, o primeiro que não é uma caricatura ou uma invenção pueril, mas uma verdadeira força da aniquilação e da ruína. Na última e estupenda criação de Heath Ledger (morto em 22 de janeiro, de overdose acidental de medicamentos), o Coringa é algo que se pode temer: alguém cujo desejo único é destruir os outros, e tudo; e cujos motivos é possível intuir, mas não medir nem compreender. O mais existencialista dos super-heróis ganha, assim, um adversário que é o seu exato oposto e complemento – um niilista.
De Amnésia e Insônia a O Grande Truque, o interesse do diretor inglês Christopher Nolan esteve sempre aí, no que acontece a uma pessoa quando uma distorção passa a defini-la. Batman Begins, destinado a restabelecer as origens do personagem, se desviava dessa rota, e talvez por isso deixasse a sensação de que algo fundamental lhe faltava. Agora, Nolan retoma seu tema com ímpeto redobrado: a distorção que é o Coringa passa aqui a definir também Batman. Na verdade, quase que o explica. Tudo o que o milionário Bruce Wayne e seu alter ego heróico têm de perfeito e composto, o Coringa tem de desfeito e desorganizado – a maquiagem tosca e borrada, a voz estranha, a sujeira do cabelo, as roupas mal costuradas, a absoluta ausência de autocensura. Sabiamente, O Cavaleiro das Trevas se recusa a dar a ele uma identidade e uma história pregressa: de certa forma, como na novela célebre concebida por Oscar Wilde, Batman seria Dorian Gray, sempre jovem e íntegro, enquanto o Coringa seria o retrato que Dorian esconde no sótão, e no qual ficam impressas as marcas de sua corrupção e degradação. Em O Cavaleiro das Trevas, a tese não é apenas que os super-heróis dependem de vilões para existir; é que eles mudam no contato com a torpeza, e não para melhor. O impacto do Coringa, assim, não se fará sentir apenas sobre Batman, mas também sobre o procurador Harvey Dent (Aaron Eckhart), cuja estrela está subindo graças à perseguição que empreende contra os mafiosos de Gotham. Dent mexe onde mais lhes dói – no bolso –, e os criminosos se vingam lançando sobre a cidade o apocalipse que é o Coringa.
De volta à sua zona de conforto, Nolan faz tudo o que não pôde fazer em Batman Begins. O pessimismo é quase insuportável, as cenas de ação (rodadas no sistema Imax, que lhes confere excepcional profundidade e nuance) são uma expressão do caos, e os reveses de Gotham se acumulam até o descontrole. Também o elenco encontra terreno mais bem preparado em que exercitar seus muitos pontos fortes. As atuações são nunca menos que excelentes, de Christian Bale como Bruce Wayne/Batman a Michael Caine, Morgan Freeman, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhaal (substituindo, com grande vantagem, a inexpressiva Katie Holmes) e Gary Oldman – como o triste, gentil e torturado Comissário Gordon.
Um degrau acima, contudo, está o trabalho de Ledger, que exprime o prazer do Coringa na própria decomposição com uma originalidade arrebatadora, tão afinada nos seus aspectos intuitivos quanto nos técnicos (a voz, um estudo sobre os timbres agudos e anasalados de Marlon Brando, conta como um personagem em si). Christopher Nolan escolheu o australiano ao vê-lo como o caubói homossexual Ennis Del Mar em O Segredo de Brokeback Mountain e constatar que estava diante de uma criatura virtualmente mitológica – um ator sem vaidade. (O mesmo não se pode dizer de Jack Nicholson, que pelo menos até o próximo dia 18 segue considerando-se o Coringa definitivo, e ficou furioso por ter sido preterido.) Ledger é o que O Cavaleiro das Trevas tem ao mesmo tempo de mais excitante e de mais devastador. Se aos 28 anos um ator foi capaz desse assombro, mal é possível imaginar o que o cinema perdeu.
Isabela Boscov Publicado originalmente na revista Veja em 16/07/2008 Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2008 |