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Isabela Boscov

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Águas Rasas

Com Blake Lively e um tubarão, o diretor Jaume Collet-Serra faz uma ótima brincadeira com Encurralado, o filme de estreia de Steven Spielberg

Por Isabela Boscov Atualizado em 13 jan 2017, 18h17 - Publicado em 28 ago 2016, 03h19

A amiga deu o cano; Nancy (Blake Lively) não só está sozinha como nem sequer sabe exatamente onde a praia fica ou o nome dela (o pessoal do lugar faz segredo, para proteger seu santuário da turistada que vai ao México barbarizar): ela mostrou a foto que sua mãe tirou ali 25 anos antes e um sujeito deu carona a ela na sua caminhonete velha. Para além da arrebentação, Nancy enxerga dois surfistas – e mais ninguém. Não há viv’alma na baía azul-turqueza, na qual tubos perfeitos rolam sobre uma cama de corais. Não que Nancy queira companhia: ela está ali para lembrar da mãe, curtir a fossa pela morte dela – e pegar onda. Os dois surfistas tentam mexer com ela, mas a coisa não vai longe. Quando eles vão embora, ela fica, apesar de ser quase hora do pôr-do-Sol.

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Antes ela tivesse ido embora, e rápido. Se você viu o trailer, sabe que Nancy está a cinco minutos a nado da areia, mas poderia estar na Lua: entre ela e a segurança, surge um tubarão branco em fúria. Nadando desesperada para se refugiar em uma rocha no meio do mar, ela faz um talho horroroso na perna. Sangrando muito, Nancy é como um farol aceso; o tubarão sempre vai saber onde ela está. Encarapitada na rocha, machucada, gelada de frio, queimada de sol, esfolada pelos corais, sem água e sem comida e apenas com uma gaivota de asa quebrada por companhia, Nancy vai atravessar um suplício durante a hora seguinte do filme do diretor catalão Jaume Collet-Serra – e o tubarão (ou tubaroa, na verdade, diz o diretor), esse nem por um instante dá uma chance a Nancy.

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Confesso que adoro os filmes de Jaume Collet-Serra. Nem tanto a fase de terror da qual A Órfã é o destaque, mas sim aqueles que eu chamo de seus filmes de via-crúcis: Desconhecido, Sem Escalas e Noite Sem Fim, nos quais o ator-fetiche do diretor, Liam Neeson, atravessa martírios (cada filme o submete a um martírio de natureza diferente) durante um intervalo fechado de tempo. Mas, antes que alguém pense que Collet-Serra de alguma maneira se repete por usar sempre esse tipo de premissa, já vou esclarecendo que ele filma que é uma beleza e é de uma criatividade e um dinamismo notáveis, e cada variação desse mesmo tema soa como uma melodia diferente.

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Em Águas Rasas, a coisa fica ainda mais interessante: quando fica sabendo da história do filme, todo mundo lembra de Tubarão. Claro, não haveria como não lembrar. Mas a inspiração de Collet-Serra é outra, embora da mesma autoria: é o Encurralado com que Steven Spielberg estreou em 1971. Quem não viu Encurralado não sabe o que está perdendo. São exatos 90 minutos de puro desespero. O motorista interpretado por Dennis Weaver ultrapassa um baita caminhão na estrada, e o caminhoneiro reage como o tubarão de Águas Rasas ao ser perturbado durante a refeição – ou seja, reage com uma fúria primitiva de predador, com aquela persistência encolerizada de bicho que não pode perder a presa de vista nem, em hipótese nenhuma, deixá-la escapar. Spielberg frisa essa alusão a uma ira primitiva e bestial com um recurso simples e extremamente eficaz: nunca mostra o rosto do caminhoneiro. Às vezes veem-se suas botas, ou suas mãos, ou o chapéu. Mas nunca ele inteiro, e jamais seu rosto. Em Águas Rasas, Collet-Serra faz o mesmo com o tubarão, quase até o último minuto.

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Um dos aspectos determinantes da progressão de Encurralado, que Spielberg (então com 24 anos) usa com maestria, é a linearidade da estrada, da qual o pobre Dennis Weaver não tem como fugir e na qual ele está sempre em evidência. É uma alegria ver a maneira como Collet-Serra transmuta esse princípio para a circularidade da baía – da qual Nancy também não pode fugir, e na qual ela também está sempre em evidência. Acho estimulante quando um diretor se propõe a transformar um problema lógico para o qual não há solução em um ponto forte do filme, explorando-o até o limite da sua imaginação.

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Agora, a surpresa maior de Águas Rasas: Blake Lively. Não sou muito da turma de Gossip Girl e, embora tenha gostado muito de Blake em Atração Perigosa e em Selvagens, tinha achado bem sem graça o único papel principal dela até aqui, em A História de Adaline. Agora está claro que, em Adaline, ela foi mal aproveitada – e que Collet-Serra identificou bem os fortes dela (além dos óbvios e muito bonitos mesmo, que são o cabelão, o corpão e o rosto lindo). Blake (que está ainda em outra estreia da semana, o Café Society de Woody Allen) tem força e perseverança sob a beleza, e tem também uma certa capacidade de se recolher dentro de si e se recompor. Ao contrário de Liam Neeson, que nos filmes de Collet-Serra usa a cabeça mas também distribui muita pancada, ela aqui não teria a menor chance de medir forças fisicamente com o tubarão. São esses atributos então, os de personalidade, em que o diretor tem de se apoiar, e Blake corresponde à confiança dele com um compromisso inflexível com a sua personagem. Por causa dela, Collet-Serra se obriga a ser ainda mais criativo que de costume – e não há homenagem maior que um diretor possa prestar a uma atriz.

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Trailer

ÁGUAS RASAS
(The Shallows)
Estados Unidos, 2016
Direção: Jaume Collet-Serra
Com Blake Lively, Óscar Jaenada, Angelo Jose
Distribuição: Sony
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