Nascida em uma família de meios escassos, mas de fartos atributos intelectuais, a americana Louisa May Alcott (1832-1888) foi uma dessas espoletas do século XIX que hoje suscitam admiração no mesmo grau em que, em seu tempo, provocavam consternação ou desconcerto: filha de Bronson Alcott, um educador, filósofo, ultrarreligioso, abolicionista e defensor dos direitos das mulheres, Louisa, a segunda de quatro irmãs, cresceu ouvindo as discussões paternas com alguns dos pensadores mais influentes do período, como Ralph Waldo Emerson e Henry Thoreau, e tornou-se também ela uma abolicionista e uma inconformista — além de uma realista. Ciente de que o pai não levava jeito para as coisas de ordem prática da vida (por exemplo, pôr comida na mesa), Louisa desde cedo tomou para si as obrigações materiais da família. Deu aulas, trabalhou como doméstica e, ao perceber que podia ganhar algum dinheiro — mas não muito — publicando suspenses e contos góticos que adorava escrever, mudou de tática. A contragosto, pôs no papel uma história com melhores perspectivas comerciais: uma versão ficcionalizada da sua infância e juventude com as irmãs. Em Mulherzinhas, Jo March, suas irmãs, Meg, Beth e Amy, e sua mãe, Marmee, enfrentam com otimismo a penúria doméstica e a ausência do pai (no livro, ele está na Guerra Civil; na realidade, estava sempre no mundo da lua), despertam para a arte e o amor e aprendem a achar um meio-termo entre o sonho e o possível.
“Papinha moral para jovens”, foi como a própria Louisa se referiu ao romance — que achava uma chatice só — e à santimônia com que, por razões editoriais, cuidou de impregná-lo. Mulherzinhas, porém, foi um imenso sucesso. Virou clássico instantâneo, deu origem a duas sequências que Louisa escreveu de nariz torcido mas com afinco mercantilista e, um século e meio depois de ser publicado, continua a ser objeto de novas adaptações — uma minissérie da BBC/PBS lançada há dois anos e disponível no serviço de streaming Prime Video e o longa-metragem Adoráveis Mulheres (Little Women, Estados Unidos, 2019), já em cartaz no país.
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Onde a minissérie estrelada por Maya Hawke ganha em fidelidade, o filme de Greta Gerwig ganha em vivacidade: a diretora do superestimado Lady Bird faz uma reconstituição menos decorativa e mais naturalista da Nova Inglaterra dos anos 1860 e mexe com segurança na estrutura do romance, trocando o enredo linear por idas e vindas no tempo que trazem ao primeiro plano os pontos que ela quer sublinhar — em especial a inquietação de Jo (Saoirse Ronan), a personagem que é o alter ego da autora. Jo não tem paciência com veleidades femininas e cultiva uma amizade franca com o vizinho, Laurie (Timothée Chalamet), fazendo-se de cega aos arroubos amorosos dele: Laurie é rico e, portanto, seria um ótimo partido, mas Jo quer se impor pelo intelecto e pelo trabalho, morar sozinha na cidade grande e, de preferência, nunca se casar.
Leitora atenta não só do romance como também da biografia de Louisa May Alcott, a diretora e roteirista aparou quase todas as lições de moral que irritavam a autora e também muitos leitores. As que restaram aparecem em uma nova perspectiva: não são algo a ser ensinado, mas sentido na pele como o exasperante exercício de resignação que as mulheres do século XIX tinham de impor a si mesmas, enquanto olhavam de fora da festa a invejável liberdade masculina. Da mesma forma que em Lady Bird, Greta dá rédea solta à sua atriz preferida, Saoirse Ronan, que acaba pintando Jo em pinceladas largas demais. Já Laura Dern, como Marmee, e Florence Pugh, como a caçula Amy, trabalham com bico de pena, criando detalhes e nuances que aprofundam suas personagens bem além do que está nas páginas do livro ou mesmo do roteiro.
Para surpresa de sua autora, Mulherzinhas não apenas pagou as muitas dívidas dos Alcott como rendeu a ela um conforto e uma independência que nunca imaginara ter. Louisa pôde viver como “uma solteirona literária”, como se descrevia, dona de seu nariz e de sua conta bancária — ainda que incumbida dos cuidados com a mãe doente e o pai em declínio mental. “Nunca gostei de meninas nem conheci muitas — exceto por minhas irmãs”, admitia, explicando a irritação de se ver amarrada à menos predileta de todas as suas criações (“Espero que um terremoto engula Jo e sua escola e enterre tudo tão fundo que arqueólogo nenhum jamais seja capaz de encontrar os vestígios”, disse ela certa vez, com sua sinceridade ácida). Um dos melhores lances de Greta Gerwig em Adoráveis Mulheres é mudar parte do desfecho do romance, a fim de fazer uma justiça tardia às convicções da autora. O outro é iluminar a razão fundamental para a popularidade imediata do livro: ironicamente, a miudeza e a banalidade de que Louisa tanto desdenhava eram um raro espelho fiel em que uma jovem leitora do século XIX poderia se reconhecer.
Publicado em VEJA de 15 de janeiro de 2020, edição nº 2669
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