Dois suspenses bons e enxutos para ver na Netflix
“A Viatura” e “Super Dark Times” fazem muito com pouco
Lá vão os dois garotos, de 10 anos de idade, andando sozinhos por um campo aberto, as montanhas ao fundo, um céu azul enorme sobre a cabeça deles: Travis (James Freedson-Jackson), o mais atirado, vai dizendo palavrões que Harrison (Hays Wellford), o mais tímido, tem de repetir. Os dois acabaram de fugir de casa, porque é isso que os meninos têm de fazer de vez em quando: viver uma aventura. Travis e Harrison têm um pedaço de carne seca para dividir e nenhuma noção de perigo ou de consequência. Tanto que, quando topam com uma viatura policial largada numa ravina, sem ninguém por perto, os dois vão de desafio em desafio se aproximando dela (“aposto que você não tem coragem de…”). Em questão de minutos já estão dentro do carro – e dando a partida, e saindo com ele pelo mato, e então caindo na estrada. A viatura, porém, tem dono: o xerife Kretzer (Kevin Bacon), que estava ali atrás das árvores, cuidando de um probleminha. Kretzer quer seu carro de volta. Quer muito. E como quer.
A Viatura, que entrou há pouco no catálogo da Netflix, é o que se costuma chamar de um exercício de estilo: o objetivo primordial do diretor Jon Watts neste seu segundo longa (desde então ele fez Homem-Aranha: De Volta ao Lar) é trabalhar as convenções do suspense de perseguição. Em geral, esse é o tipo de brincadeira que se faz melhor com poucos elementos e baixo orçamento, e A Viatura confirma a regra. Tudo, aqui, está na lógica de como filmar: 1) começando de longe, com os personagens numa paisagem aberta, movendo-se vagarosamente por ela; 2) chegando perto deles, enquanto eles travam conhecimento com o objeto central da história; 3) grudando neles, e acelerando cada vez mais o deslocamento a partir do momento em que personagens e objeto associam-se definitivamente; 4) parando abruptamente para o desenlace, que é uma variação complexa da situação #2.
No meio disso, claro, há os “desvios de rota” para os outros personagens que fazem parte da história: o xerife, uma mulher (Camryn Manheim) que cruza com os dois garotos dirigindo loucamente pela estrada, o sujeito (Shea Whigham) que é parte do problema que o xerife estava resolvendo quando ficou sem viatura. Mas, pouco a pouco, também eles vão se integrar geograficamente ao objeto central – os dois meninos na viatura. A arquitetura e a trajetória do enredo são impecáveis. E, como também é essencial em um filme assim tão esparso, os cinco atores são, sem exceção, perfeitos para esses papeis escritos de forma mínima. Mas garanto que nenhum deles se divirte tanto quanto Kevin Bacon, com seu bigode de escovinha e suas artimanhas de homem da lei sem escrúpulos mas cheio de aflição.
Também Super Dark Times, outra novidade na Netflix, é um trabalho de diretor iniciante – e com muita promessa. Zach (Owen Campbell) e Josh (Charlie Tahan), amigos inseparáveis desde pequenos, estão naquele trecho particularmente difícil da adolescência, já mais adultos do que crianças, cheios de tédio e de impaciência, e começando a sentir de maneira aguda as pressões do isolamento social – não são nem nerds nem populares o suficiente para se encaixar com conforto em algum grupo. Numa tarde dessas em que eles ficam bestando depois da aula, uma conjuntura infeliz se forma, reunindo no mesmo lugar Zach, Josh e dois outros garotos – um deles, um tipo muito estúpido –, um baseado roubado e uma espada de samurai.
É o ponto inicial da espiral que vai separar os dois amigos e lançar um deles num rumo imprevisto. Super Dark Times se passa em 1995 (a relativa privacidade da era pré-smartphone e pré-redes sociais é importante para a trama), em um final de outono ou começo de inverno que é ele próprio uma dessas zonas fronteiriças, e numa dessas cidadezinhas propositalmente genéricas em que o cinema e a TV gostam de situar essas histórias de iniciação. O diretor Kevin Phillips, que vem dos curtas-metragens e da direção de fotografia, traz o melhor dessa bagagem – a concisão e a composição visual muito estudada – para a sua estreia, e usa muitíssimo bem também a edição de som: às vezes, o que você está ouvindo contradiz ou modifica o que você está vendo, provocando ainda mais insegurança. Aviso que tem muita gente que não gosta do ato final do filme. Eu mesma não sou uma dessas pessoas; imagino que, muitas vezes, as piores coisas comecem assim, por acidente ou acaso.
A VIATURA (Cop Car) Estados Unidos, 2015 Direção: Jon Watts Com Kevin Bacon, James Freedson-Jackson, Hays Wellford, Shea Whigham, Camryn Manheim |
SUPER DARK TIMES Estados Unidos, 2017 Direção: Kevin Phillips Com Owen Campbell, Charlie Tahan, Max Talisman, Elizabeth Cappuccino, Sawyer Barth, Amy Hargreaves |