Se você é uma das pessoas que ainda não assistiram a A Máfia dos Tigres, deve ter motivos bem específicos para resistir àquela que, depois da própria Covid-19, é a obsessão nº 1 do mundo em quarentena – e admito que a imagem do protagonista Joe Exotic no carretel da Netflix pode ser tão fascinante quanto pouco convidativa. Relutei um bocado em dedicar sete horas da minha vida a um grupo de pessoas broncas e vulgares acometidas por paranoias de perseguição e com o ego em descontrole; o noticiário diário já é estrelado por tipos assim, em número maior que o razoável. Mas me rendi, e até agora não sei bem o que pensar do que vi – exceto que a série documental dos cineastas Eric Goode e Rebecca Chailin é das melhores que já vi, ombro a ombro com The Staircase (que também está na Netflix e merece uma maratona toda dela).
Para chover no molhado: Joe Exotic, nascido Joe Schreibvogel e hoje legalmente registrado como Joe Maldonado-Passage – ele adotou o sobrenome dos dois últimos maridos –, é um caipira gay de Oklahoma que usa uma franjinha ensebada e um mullet loiro, adora armas, diz adorar grandes felinos (quando o documentário começou a ser rodado, lá por 2015, ele tinha mais de 200 tigres, leões etc. na sua propriedade) e odeia com todas as forças Carole Baskin, que se propagandeia defensora dos animais e mantém a sua própria quota de grandes felinos no que ela jura ser um santuário, não um zoológico, em uma área na Flórida – onde talvez estejam escondidos os restos mortais do marido anterior dela, que era milionário e sumiu em circunstâncias bastante suspeitas quando se preparava para mandar Carole passear. O marido atual, que talvez seja mais esperto do que parece, beija o chão em que ela pisa e diz amém para tudo. Carole, por sua vez, também odeia Joe com todas as forças, e a rivalidade entre os dois escala até culminar em um plano de assassinato. Nesse meio-tempo, uma quantidade prodigiosa de personagens altamente pitorescos vai entrando em cena: um místico polígamo com ótima cabeça para os negócios, um golpista que pratica suingue em Las Vegas, um ex-presidiário que talvez aceite contratos de assassinato a preço de ocasião, rapazes viciados em metanfetamina que topam casar com Joe Exotic, um ex-balconista da gôndola de armas do Walmart que vira coordenador de campanha política, um ex-repórter de respeito que virou produtor de reality e é um caubói arretado, um dono de bar de strip-tease que faz bico como informante do FBI e tem um penteado ainda pior que o de Joe, se possível – e por aí vai.
Todas essas figuras têm uma necessidade em comum – a de ser o centro das atenções e adquirir fama – e também uma excentricidade que as une: paixão, curiosidade ou cobiça por grandes felinos em geral e por tigres em particular. Poucas coisas são capazes de representar poder, audácia e extravagância quanto entrar tranquilamente numa jaula repleta de predadores ápex de 350 quilos e dentes de 10 centímetros, ou rolar alegremente com um deles na sala de casa. Não apenas ter um tigre, mas ser capaz de submetê-lo, é ganhar uma identidade inteira e pronta; é o auge do narcisismo – e quase todos os personagens de A Máfia dos Tigres são pessoas que tiveram sérios problemas de auto-imagem no passado.
Embora os animais não sejam o foco da série, fica bem claro que são eles os piores perdedores: chame-se de zoológico ou de santuário, eles é que estão espremidos em áreas minúsculas, convivendo uns com os outros e com os seres humanos em proximidade sufocante. E, embora Joe Exotic, Carole Baskin e outros “colecionadores” que aparecem na série não tenham pejo em usar quem quer que seja para seus propósitos, ninguém é tão usado quantos os bichos – para ganhar dinheiro, para saciar a vaidade, para proporcionar sensação de importância a pessoas com sentimentos de inferioridade, para satisfazer desejos que não deveriam ser satisfeitos por ninguém, como o de pegar filhotes no colo e de fazer selfies com animais adultos. É de uma indignidade sem tamanho. Ou melhor dizendo, com tamanho, sim: estima-se haver até 10 mil tigres em cativeiros na maior parte particulares nos Estados Unidos, contra 4 mil tigres livres em seus hábitats naturais em todo o mundo. É a pior definição possível de “querer é poder”.
Aí, para mim, está o que torna A Máfia dos Tigres muito mais do que o prazer culpado de ficar olhando um desastre acontecer, ou assistir a um desfile de figuras bizarras e de baixeza: os ódios, obsessões e comportamentos condenáveis (quando não criminosos) dos personagens foram captados por Eric Goode e Rebecca Chaiklin em uma espécie de voltagem máxima – a qual, inacreditavelmente, esses personagens sustentaram nesses níveis extremos ao longo de todos os cinco anos em que a dupla de realizadores conviveu com eles. Mas, em si mesmos, os ódios, obsessões e comportamentos são muito familiares; qualquer um de nós pode experimentá-los (de preferência, guardando-os para si e obrigando-se a domá-los), e cada vez mais eles têm sido externados, manifestados e postos em prática em um mundo no qual dizer e fazer o pior vai virando o novo normal. O que A Máfia dos Tigres faz é expor o estado extremo de algo generalizado – a fragilidade do ego contemporâneo e a maneira como as tentativas de aplacar essa dor facilmente degeneram em sociopatia. Joe é tudo, menos exótico.