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Isabela Boscov

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A Lenda de Tarzan

Como (e por que) casar a fantasia com a história real

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 jun 2024, 22h11 - Publicado em 22 jul 2016, 19h47

Quando o americano Edgar Rice Burroughs criou Tarzan, em 1912, certas coisas que hoje em dia são consideradas chocantes eram ainda perfeitamente normais e aceitáveis – por exemplo, retratar a África como um continente à disposição dos europeus, ou pintar um homem branco como naturalmente superior, em físico e inteligência, aos negros. Mas, da mesma forma que não se pode culpar Burroughs por ter sido um homem do seu tempo, não tem cabimento, hoje, endossar o retrato que ele fez. Como, então, atualizar Tarzan sem perder sua essência e sem ser ofensivo? O muito simpático Greystoke – A Lenda de Tarzan, o Rei da Selva, de 1984, é bem anterior à onda politicamente correta, mas já saía por uma tangente interessante: como o homem-macaco que reassume seu posto de lorde inglês, Christopher Lambert causava choque cultural e provocava escândalo na sociedade “de bem” porque não conseguia reprimir seu lado mais livre, solto e libidinoso (Jane, por outro lado, não tinha do que se queixar).

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Já o novo A Lenda de Tarzan pega o caminho que se esperaria agora, o da sensibilidade racial e histórica. O que eu não esperava, e foi uma surpresa muito agradável, é o quanto o filme se aproveita bem, e com muita fidelidade, de fatos reais para contextualizar a aventura. Mais: os fatos de que ele se aproveita merecem mesmo ser conhecidos e revistos.

O diretor inglês David Yates (de quatro dos cinco últimos episódios de Harry Potter e de Animais Fantásticos e Onde Habitam, que estreia em novembro) pega Tarzan aqui já na sua encarnação civilizada: no papel de John Clayton, ou Visconde de Greystoke, ele está fazendo o que pode para se domar às restrições de sua vida aristocrática – e até no jeito de andar do sueco Alexander Skarsgård, que é um excelente ator, sente-se o quanto de energia e concentração esse esforço consome. Jane (Margot Robbie, aquele espetáculo) não tem o menor problema em admitir que adoraria retornar à África na qual cresceu; mas, para lorde Greystoke, seria como admitir uma derrota – o seu fracasso em se tornar algo além de uma figura curiosa, à volta da qual todos se sentem desconfortáveis.

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É por isso que, ao receber um convite de Leopoldo II da Bélgica para ir em missão diplomática visitar os atuais domínios do rei – o Congo em que foi criado por sua família de macacos –, ele o recusa: está subentendido que o convite é destinado a Tarzan, não a lorde Greystoke. (E, se soubesse o que o manda-chuva de Leopoldo no Congo, o vilão finório interpretado por Christoph Waltz, tem em mente para ele, aí é que Tarzan não iria mesmo.) Um desconhecido interpretado por Samuel L. Jackson, porém, aborda lorde Greystoke e o faz mudar de ideia – e aí a história real do Congo se mistura à história de fantasia de Tarzan.

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Aos fatos: entre 1884 e 1885, na chamada Conferência de Berlim, as nações europeias colocaram uma régua em cima do mapa da África e dividiram o continente entre si. Leopoldo II da Bélgica ganhou uma mamata sem precedentes: conseguiu que toda a área do Congo (mais de 2,5 milhões de quilômetros quadrados, ou pouquinho menos do que um terço da área do Brasil) fosse dada a ele, pessoalmente, como seu Estado privado. Leopoldo fizera longas juras à Conferência de que iria transformar o Congo num paraíso para os congoleses. Mas, assim que tomou posse da região, começou a instaurar nela o inferno. Até 1908, quando as outras nações europeias finalmente decidiram tirar dele o Congo, Leopoldo II extraiu do país mihões de toneladas de borracha, marfim (e retirar as presas dos elefantes requer matá-los), minérios e pedras preciosas, que vendia na Europa para rechear seu tesouro pessoal. Não havia censos nem se mantinham registros, mas calcula-se que o exército particular do rei, a Force Publique, matou entre 2 milhões e 10 milhões de congoleses nesse período – ou seja, até metade de toda a população, uma taxa que talvez só Pol Pot, o ditador psicopata do Cambodja, tenha conseguido igualar em toda a história.

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Leopoldo II, porém, era muito bem relacionado: era da casa de Saxe-Coburg e Gotha, como a rainha Vitória da Inglaterra (então a pessoa mais poderosa do planeta); e seu pai, Leopoldo I, fora quem arranjara o casamento entre seu sobrinho, Albert, e Vitória. Logo depois da morte de Vitória, em 1901, começou a estourar na Europa o escândalo do massacre e extorsão do Congo por Leopoldo II. Escândalo mesmo: jornais, livros, cartas abertas e panfletos narravam os horrores perpetrados pelo rei belga na África e mobilizaram a opinião pública.

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Bem antes disso, porém, outras pessoas – em especial missionários – já vinham tentando chamar a atenção para as atrocidades no Congo. Uma das primeiras foi o americano George Washington Williams – exatamente o personagem que Samuel L. Jackson interpreta.

Williams era negro, tinha lutado pelo Norte na Guerra Civil de 1861-1865, e depois tornara-se pastor religioso, advogado, jornalista e ativista. Quando começou a ouvir relatos do que se passava no Congo, decidiu conferir pessoalmente a situação. Esteve lá em 1890, documentou os horrores cometidos por Leopoldo II, enviou a ele uma carta aberta, divulgou o que vira de todas as formas possíveis no breve tempo que lhe restou após a viagem (ele morreu em 1891). E é com essa intenção, a de verificar as denúncias de escravagismo e genocídio, que o George Washington Williams do filme aborda lorde Greystoke: se o inglês topar a missão, ficará mais fácil ao americano entrar no Congo como seu acompanhante.

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Gostei muito de A Lenda de Tarzan pelo espírito de aventura à antiga que ele tem, cheia de heroísmo, romance e perigos. Gostei também do trabalho de Alexander Skarsgård e de Margot Robbie (tem uma cena, em que ele fareja ela todinha, que é muito, hmmm, interessante). Me diverti com Christoph Waltz e adorei o jeito à-vontade de Samuel L. Jackson. Mas o que eu mais apreciei no filme foi isso, a maneira como ele atualizou o personagem simplesmente inserindo-o na história real do lugar em que ele teria existido – além da própria iniciativa de recuperar essa história real tão calamitosa e reapresentá-la ao público. O que Leopoldo II fez no Congo não necessita de retoque dramático: é horrível demais para que pudesse ser simplesmente imaginado.

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Veja aqui a entrevista com Alexander Skarsgård


Trailer

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A LENDA DE TARZAN
(The Legend of Tarzan)
Estados Unidos, 2016
Direção: David Yates
Com Alexander Skarsgård, Margot Robbie, Samuel L. Jackson, Christoph Waltz, Jim Broadbent, Djimon Honsou, Sidney Ralitsoele, Edward Apiagyei, Casper Crump
Distribuição: Warner
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