Cansados de ser perseguidos por camponeses armados de tochas e forcados, os recém-casados Mortícia e Gomez Addams decidem procurar um cantinho isolado em algum lugar tão funesto, mas realmente tão horrível, que possam se sentir em casa — e lá vão eles então para Nova Jersey, o estado vizinho a Nova York do qual os americanos adoram zombar. Encontram um manicômio abandonado, e transformam a edificação gótica em lar e seu último interno, em criado e babá do casal de filhos que logo vem. Tropeço, com suas feições de Frankenstein, ar estoico e alma sensível (ele toca piano que é uma beleza, e lê Mulherzinhas nas horas de folga), é a realização mais admirável de A Família Addams (The Addams Family, Estados Unidos/Inglaterra/Canadá, 2019), animação já em cartaz no país que revive os personagens lançados por Charles Addams em cartuns, em 1938, e celebrizados numa série de TV dos anos 60. Mas não é a sua única realização: a opção por desenho animado dribla o excesso de produção que engessava o filme em live-action de 1991 e permite explorar soluções visuais e situações mais criativas — como a curiosidade da taciturna Wandinha pelas outras crianças da cidade que se formou ali perto e ameaça o estilo de vida (ou de morte) dos Addams.
Desenhos são, também, uma forma eficaz de discutir questões complexas com uma plateia jovem, e este A Família Addams propõe a ela que mesquinhez, bisbilhotice e desejo de aprovação a qualquer custo podem tornar uma pessoa muito mais feia do que qualquer integrante do clã Addams — é o caso da horrorosa Margô, semicelebridade de TV que quer expulsar os novos vizinhos estranhos. E, por meio das dificuldades de Feioso, propõe outras medidas de aceitação para filhos que fogem às expectativas. Para os adultos que gostam de cinema, há outro prazer ainda: um sem-número de citações engenhosas a filmes clássicos. É leve, enxuto — e divertido.
Publicado em VEJA de 6 de novembro de 2019, edição nº 2659