Por uns bons anos, ministrei uma oficina de crítica literária no curso de Jornalismo Cultural oferecido pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap). Sempre usei, em sala de aula, os quatro parágrafos iniciais de Desonra, de J.M. Coetzee: a arte do subentendido, de sugerir mais do que dizer, está ali realizada com um grau de excelência ímpar, o que torna essa uma passagem muito rica para quem deseja despertar em seus alunos as faculdades mais sutis e difíceis do bom leitor. O início do romance relata como David Lurie, professor de literatura em uma universidade da Cidade do Cabo, havia conseguido resolver “o problema do sexo”: ele recorre aos bons serviços de Soraya, uma prostituta. Não se diz expressamente que ela é prostituta, mas o leitor entende do que se trata. Há outra dessas insinuações notáveis na nota passageira sobre a pele de Soraya: “[Lurie] acaracia seu corpo marrom, cor-de-mel, sem marcas de sol, deita-a, beija-lhe os seios, fazem amor” (grifo meu). Certa vez um aluno me disse que esse “cor-de-mel” era brega, que lembrava letra de pagode. Deixara passar o principal: a pele cor-de-mel da prostituta não tem marcas de sol. Soraya é negra. O fato de o narrador dizer isso só de forma muito indireta evoca os tabus e interdições da sociedade sul-africana pós-apartheid.
Pois ali estava eu, um professor branco, falando sobre como um escritor branco representou em sua ficção as tensões raciais em um país de maioria negra que por muitos anos viveu sob o apartheid. Penso nisso hoje e acho tudo muito temerário: eu estava totalmente desprovido do tal “lugar de fala”! Minha aula, no entanto, nunca suscitou qualquer problema com os alunos, brancos ou negros.
Mas se um aluno houvesse filmado minhas preleções? Ou gravado outros tantos comentários de que já nem me lembro mas que, extraídos do contexto dinâmico de uma sala de aula, poderiam parecer inapropriados, preconceituosos ou abusivos? Por exemplo, a discussão que eu fomentava sobre o que é ou não pornografia a partir de uma cena de sexo muito ruim de um romance brasileiro deste século?
Deputada estadual eleita pelo PSL de Santa Catarina, Ana Caroline Campagnolo incentiva que os alunos gravem as aulas para denunciar maus professores. A preocupação dela não é com racismo ou “lugar de fala”, mas com “doutrinação”. Entenda-se, doutrinação esquerdista, ou, ainda mais especificamente, ataques ao presidente eleito. A vitória de Bolsonaro, diz a futura deputada em sua página social, revoltará os “professores doutrinadores”, que usariam a sala de aula para dar vazão a suas “queixas político-partidárias”. Ana Caroline instrui os alunos a gravar ou filmar os tais doutrinadores e oferece um telefone para encaminhar queixas. Os alunos devem lhe enviar as manifestações que “humilhem ou ofendam sua liberdade de crença ou consciência”. O instinto de vigilante social é comum a ideólogos de todas as cores: humilhar e ofender, não por acaso, são verbos caros à esquerda identitária, que vê ofensas e humilhações em espetáculos teatrais com blackface ou até em clipes nos quais a cantora branca ocupa seu lugar alguns passos à frente dos dançarinos negros.
(Recentemente, um tribunal austríaco condenou uma mulher por ofensas ao Islã, e a Corte Europeia de Direitos Humanos confirmou a condenação. Tudo o que a condenada fez foi sugerir que Maomé seria pedófilo, pois casou com uma menina de nove anos. Não sei e nem tenho muito interesse em saber o que a moça que aparece na foto acima portando um fuzil da Barbie pensará a respeito do incidente. Mas a direita carola em geral tende a ficar inflamada com esses casos em que se protegem os muçulmanos de supostas ofensas. Eu mesmo considero absurda e abusiva a decisão europeia: o mero sentimento de ofensa não deve ser jamais justificativa para que se limite a liberdade de expressão.)
Sim, há casos de doutrinação partidária e o proselitismo raso em sala de aula. É um problema menor em um país que ocupa a rabeira do ranking de Ciência e Matemática do PISA, mas, que seja, é um problema. Os estudantes podem e devem procurar os canais competentes para prestar suas queixas sempre que ouvirem o que julgam ser propaganda política. Mas recolher queixas dessa natureza não é atribuição de deputados que sequer tomaram posse. Diferenciar o que de fato configura doutrinação abusiva do que é apenas a expressão natural da visão de mundo do professor não será sempre tarefa simples. Você, leitor, confiaria essa tarefa a seu deputado? Confiaria a educação de seu filho à jovenzinha que combina saia estampada com blusa de listras? Em um post no segundo turno das eleições, Ana Caroline Campagnolo diz que a luta naquele dia não era “contra carne ou sangue, mas contra potestades malignas”. A mulher que muito literalmente demoniza adversários políticos pode falar em doutrinação?
Mais importante: eventuais casos de destempero ideológico – o vídeo viral do professor que perde a calma e a compostura com o aluno que lhe teria falado de Bolsonaro está, claro, na timeline da deputada do fuzil rosinha — não justificam o estabelecimento de uma atmosfera policialesca nas escolas. O bom professor não merece trabalhar sob a pressão permanente do vigilante ideológico que pode estar gravando o que ele fala com o celular. Aliás, se assim julgar, o professor pode, sim, proibir gravações de suas aulas. Como também pode exigir absoluto silêncio enquanto explica a matéria do dia, ou proibir que se consuma lanchinhos em classe. Há óbvios limites para seu poder de mando, mas, na sala de aula, o professor é a autoridade.
Autoridade: que autoproclamados conservadores não entendam essa noção tão básica evidencia a indigência intelectual da direita que acaba de tomar o poder.
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A deputada catarinense poderia ser só uma dessas bizarrias regionais que existirão em todas as casas legislativas do país. Não é. Na timeline da moça, pode-se ver um vídeo em que o futuro presidente da República referenda as propostas policialescas de Ana Caroline. Será esse o Brasil que o capitão deseja — uma sociedade em que todos estarão sempre registrando e denunciando os sinais de “esquerdismo” do vizinho?
Já ouço ao longe a malta me chamando de comunista… Ah, que cansaço! Meus posts anteriores estão aí: quem souber ler encontrará vários ataques incisivos aos ímpetos censórios e patrulheiros da esquerda. Em um deles, citei um trecho de A Marca Humana, de Philip Roth — tal como Desonra, um romance sobre um professor universitário que cai em desgraça frente à perseguição moralista da esquerda acadêmica. Basta trocar “americano” por “brasileiro”, e a mesma passagem cairá muito bem para os dias que se anunciam: “Foi o verão americano em que a náusea voltou. (…) Quando a mesquinharia das pessoas foi simplesmente esmagadora, quando uma espécie de demônio ganhou livre curso sobre a nação e, dos dois lados, as pessoas se perguntavam: ‘por que estamos tão alucinados?'”.