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Um longo caminho

Há pessoas que se bateram pela liberdade de expressão e hoje se calam

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 28 mar 2022, 16h03 - Publicado em 26 mar 2022, 08h00

A decisão em que o ministro Alexandre de Moraes mandou bloquear o Telegram continha dois aspectos essencialmente distintos. Um deles dizia respeito a tema da mais alta gravidade, como indícios de pornografia infantil e propaganda neonazista. São crimes tipificados na lei brasileira e devem ser combatidos com rigor. Aspecto inteiramente distinto dizia respeito, mais uma vez, ao ingresso do Estado na seara do delito de opinião. Seis das dez exigências, atendidas pela rede, bloqueavam e puniam qualquer coisa relativa a um blogueiro. Um outro item mandava bloquear um jornalista. Então temos uma situação curiosa. Algo na linha: “Estão vendo ali todos aqueles neonazistas e abusadores de crianças? O.k., então prendam o blogueiro”.

Há quem não veja nenhum problema nisso. Que é papel do Estado monitorar opinião e que sem isso correríamos risco civilizatório. Há quem vá além, dizendo que nada disso é opinião, mas coisas “muito mais graves”, como escutei de um bom interlocutor. Quando perguntei a ele se essas gravidades configuravam crimes, a conversa esfriou. Ele parecia não ter resposta, mas gostava da ideia de que “aqueles malucos” fossem cuspidos para fora do debate público. No Brasil de hoje fomos aceitando, devagarinho, o Estado disciplinador. Vai se tornando aceitável que um ministro do Supremo mande banir ou prender um jornalista porque ele “passou do ponto”. Sem disfarçar as palavras: a censura prévia voltou a correr à solta no país. Uma parte da sociedade, imersa na polarização, acha bacana. Outra parte, um pouco cansada, ou assustada, silencia.

Por vezes me surpreende que essas coisas estejam acontecendo no Brasil, 34 anos depois da promulgação da Constituição. Mas talvez não devesse. Não temos uma Magna Carta, ou um Bill of Rights, em nossa formação histórica. Getúlio Vargas aparece como herói, em filmes e livros didáticos. Saudosistas de 1964 não nos faltam. Seria mesmo estranho que alguém se importasse muito com a prisão de um ou outro blogueiro boquirroto. E ainda mais “do lado errado” do jogo político.

Só prenderam “gente irrelevante”, li de um professor. A frase é reveladora. Sempre me interessei em acompanhar o destino dessa gente irrelevante. O primeiro de que me lembro foi um sujeito apelidado de “mito-show”. Negro, baiano, dançarino. Um dia fez uma vaquinha, se mudou para Brasília e se meteu em manifestações contra o STF. Foi em cana. Ninguém deu bola. Em um despacho, li que ele era suspeito de “crime associativo”. Em outro, suspeito de “causar animosidade entre os poderes”. Na imprensa, li ser um “extremista”, o que chega a ser engraçado. Pergunta sobre o enquadramento de seus crimes, nenhuma.

“Há pessoas que se bateram pela liberdade de expressão e hoje se calam”

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Depois veio uma penca de gente irrelevante. Um jornalista de Brasília, acusado de envolvimento “na preparação dos atos do 7 de Setembro”, ficou preso por dois meses e tanto e foi solto. Ninguém mais ouviu falar dele. Depois tivemos a censura às contas de blogueiros favoráveis ao voto impresso. “Mentirosos”, na visão do TSE. Aceitamos passivamente a tese de que cabia ao tribunal dizer o que era ou não “a verdade”, e mandar uma empresa cortar os pagamentos a esses brasileiros mentirosos. Depois veio um outro cidadão e seus crimes feitos de frases sobre “ameaças à democracia”, à parte o imperdoável dedo médio apontado para o prédio do STF. A tudo isso, silenciamos. Afinal, eram apenas “blogueiros bolsonaristas”, espécie de tipo penal oculto que parece justificar qualquer coisa neste país dividido.

Foi para evitar que essas coisas acontecessem que os fundadores da República americana escreveram, na Primeira Emenda à Constituição, que “o Congresso não fará leis restringindo a liberdade de expressão”. O objetivo era impedir que um direito essencial à liberdade terminasse à mercê do mundo volátil da política. Sujeito a eventuais maiorias, no Legislativo, ou à interpretação subjetiva dos juízes, ao longo do tempo.

É o que vemos no Brasil de hoje. Com o detalhe de que dispensamos a lei. Fake news, por exemplo, não é crime no Brasil. Mesmo assim, pessoas são punidas sob alegação de fake news. Há um problema nisso? Lamento dizer que sim. As democracias constitucionais foram feitas precisamente para que ninguém, nem mesmo o representante da minoria das minorias, tenha seus direitos subordinados à vontade de quem detém o poder. Mesmo que esse alguém seja a mais alta autoridade da Justiça e seja movido pela melhor das intenções.

Boas intenções e a devida base jurídica nunca faltaram em qualquer episódio de censura, no curso da história. No caso brasileiro, boas razões costumam se referir a variações da ideia de “defesa da democracia”. A base jurídica vem da plasticidade do direito. As “dependências do Supremo”, como reza o Artigo 43 de seu regimento, são todo e qualquer lugar, não é mesmo? Quem dirá o contrário? Não se admite censura prévia. Mas se admite, certo? É assim nas democracias iliberais. Nas democracias que “morrem por dentro”, como tanto se escutou nos últimos anos. Por dentro das leis infinitamente ajustadas para que os que detêm o poder produzam as consequências que desejam produzir.

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O The New York Times escreveu um longo editorial, por estes dias, com um título sugestivo: “Os Estados Unidos têm um problema de liberdade de expressão”. Cresce a intolerância nos campi universitários, a cultura do cancelamento corre à solta e diversos estados ensaiam legislações restringindo o que pode ser dito nas salas de aula. Esquerda e direita apelam à ideia de “dano”, para censurar um lado e outro. O discurso que fere valores democráticos, minorias, visões religiosas. E é aí que mora o problema. São temas sem acordo possível em uma sociedade aberta. “Não havendo definição clara do que o dano significa”, diz o editorial, “as restrições se tornam arbitrárias, com efeitos desproporcionais.”

A partir daí vem o medo. Nada diferente do que se passa no Brasil agora. As democracias liberais deveriam ser o lugar em que os cidadãos falam sem medo. Dizem coisas por vezes insuportáveis, em um sistema que garante seus direitos. Sistema que, por definição, não reconhece a existência de pessoas irrelevantes. Tudo isso se tornou um tanto nublado nos dias que correm. Não canso de observar pessoas que durante muito tempo se bateram pela liberdade de expressão e hoje se calam. Um tema que parecia resolvido se tornou tóxico. Isso não deveria ser assim. Democracias inclusivas demandam uma definição clara sobre direitos. Temos ainda um longo caminho pela frente, nessa direção.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782

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