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Panóptico tropical

A palavra ‘liberdade’ estranhamente se tornou suspeita

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 Maio 2024, 11h38 - Publicado em 2 mar 2024, 08h00
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  • “Não tem cartazes?”, perguntou alguém, observando a manifestação de Bolsonaro, na Paulista. Não tinha. “Disseram que era pra não levar”, diz uma senhora, vestida de amarelo. Uma outra diz que o medo era que iriam “fotografar e anexar nos inquéritos”. Que teria um monte de agentes da política lendo cartaz por cartaz, vendo se não tinha algum “ataque” ao STF ou às urnas eletrônicas. Ou quem sabe algum apelo para a implantação de uma monarquia absolutista. Achei um delírio. O Brasil tem 47 000 homicídios por ano, primeiro do mundo. Alguém acha que nossas autoridades perderiam tempo xeretando cartazes, em um domingo de sol? Além disso somos um país que respeita a Constituição, e ela diz que “é livre a manifestação do pensamento”. Temos baita orgulho disso. De viver em uma grande democracia em que ninguém precisa ter medo de pegar sua canetinha hidrocor e escrever o que pensa em um papelão, num comício. Ou não é bem assim?

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    Naquele domingo também teve o rapaz português, o Sérgio Tavares, barrado no aeroporto. O sujeito chega de manhãzinha, aquela fila gigante para carimbar o passaporte, e o policial diz: “Me acompanhe”. Levam para uma salinha e passam duas horas fazendo perguntas sobre o que ele acha do Flávio Dino, das vacinas, do 8 de Janeiro. A PF diz que o problema era que o sujeito vinha atuar como jornalista, na manifestação, e não tinha visto de trabalho. Pois é. É só entrar no site do próprio governo e ler que “cidadãos da União Europeia que viajem ao Brasil para exercer atividade jornalística estão isentos de visto para estadas de até 90 dias”. O “90 dias” está até grifado, para facilitar a leitura. Uma parte da imprensa comprou a história, e muita gente ficou discutindo se ele era “jornalista” ou um “simples cidadão”. Achei divertido. Milhões de pessoas fazem lives, tuítam e tiktoqueiam, por aí, o dia inteiro, e o Estado brasileiro resolve parar logo aquele português, em Cumbica, para saber se ele acha mesmo que há uma “ditadura do Judiciário” ou algum problema com a “democracia” no Brasil? O problema não é o Tavares. Ele saiu meio assustado, daqui, foi recebido como herói, em Lisboa, e confirmou sua tese de que o Brasil virou um país esquisito.

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    O que deveria nos preocupar é o enorme iceberg abaixo de uma atitude como essa. Uma nota oficial tentou explicar que seria um “padrão” adotado na “maioria dos aeroportos internacionais”. Não é. Em quais aeroportos a polícia leva alguém para uma salinha para saber a opinião política do passageiro? Imaginem só. Você chega ao JFK, em Nova York, a polícia tranca você e pergunta: “Você criticou o juiz Clarence Thomas, da Suprema Corte, no seu Instagram?”. “Vai transmitir um comício do Trump, no TikTok?” É um pouco piada, isso. Só que não é. No interrogatório, foi dito que a ordem teria vindo de Brasília. De quem? Com base em que lei? Nos tornamos um país que monitora portugueses que opinam sobre política brasileira, na internet? Quem mais faz parte do nosso imenso panóptico tropical?

    Muita gente talvez ache que fazer perguntas se tornou tão perigoso como levantar um cartaz na Paulista. E que é melhor ficar quieto. Não sei. O Brasil se tornou uma espécie de sapo na panela. Todo mundo conhece a história. Se você colocar o sapo direto na água muito quente ele dará um pulo e vai escapar. Mas se você esquentar aos poucos, ele vai se acostumando. Vai ficar lá e morrer queimado (por favor, não testem). O mesmo acontece com a infração a direitos. Há coisa de uma década e tanto derrubamos a lei de imprensa, proibimos censura a biografias e tínhamos um secreto orgulho do “cala-boca já morreu” da nossa democracia. Depois disso, fomos cedendo. Muita gente acha legal. Não só não vê problema numa abordagem como aquela, em Cumbica, como parece pensar que “saiu barato”. Que o sujeito deveria ter sido simplesmente “despachado” de volta, sabe-se lá com que base legal. Aliás, base legal virou um “incômodo”. Por vezes pergunto sobre isso, diante de algum ato de censura ou prisão, e sinto o constrangimento no ar. É o mesmo com a palavra “liberdade”, que estranhamente se tornou suspeita por aqui.

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    “A palavra ‘liberdade’ estranhamente se tornou suspeita”

    Nesta semana também me chamou a atenção a ação movida pelo Estado para fechar uma rádio, em São Paulo. A acusação é a costumeira. Há muita “desordem informacional”, há discursos radicais que podem incentivar ações violentas, como se viu na invasão do Capitólio ou em Brasília (no Chile, em 2019? na Bolívia, por agora?), de modo que é preciso impedir a “disseminação de conteúdos sem o mínimo respaldo na realidade”. As fake news, com seus “potenciais efeitos danosos para a compreensão de fatos relevantes pela população”. O que surpreende é a conversão de uma tese sociológica, sujeita a múltiplas interpretações, em mandamento jurídico. No caso, fechar uma rádio. Nesse movimento, a própria Constituição é devidamente “corrigida”. A um mandamento claro, no Artigo 5º, garantindo o direito ao “acesso à informação”, soma-se uma sutil restrição: “Tal garantia não deve ser interpretada como mero direito a ser receptor da expressão dos outros”, mas o direito a obter “conteúdos qualificados, o oposto de desinformação”. Sensacional. A Constituição não restringe o direito à informação a uma suposta “qualidade” ou “verdade” da informação. E muito menos diz que caberia ao Estado definir essas coisas. Nossos constituintes não fizeram essa delegação porque isso comprometeria o sentido mais elementar da liberdade de pensamento. A ideia simples de que ninguém deve viver em uma sociedade na qual seus direitos dependam de uma interpretação subjetiva de quem detém o poder.

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    A liberdade e o ruído perturbam. As pessoas erram e acertam, como erram e acertam as autoridades. Vem exatamente daí o porquê da sociedade de direitos. Dos limites. Dos freios e contrapesos. E é perturbador saber que agentes de Estado se dedicam a monitorar infinitas horas de conversas em rádios ou na internet para saber se uma opinião dita em alguma terça-feira do ano retrasado, no meio da tarde, era ou não verdadeira. Ou se aquele comentarista era ou não “habilitado” para falar sobre um assunto qualquer. Muita gente, no Brasil, parece pensar que seja esta a função do Estado. Temos um problema aí.

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    O caos informacional não é um fenômeno brasileiro. É uma marca da nossa época. Da revolução tecnológica que deu a milhões de pessoas o poder de se expressar e compartilhar informação. É o que o grande James Madison chamava de “animaversão”. O debate aceso, por vezes radical, que faz parte da natureza da vida republicana. É esse o mundo com o qual devemos aprender a viver. E é exatamente porque as pessoas andam mais engajadas e passionais que o Estado deve andar na direção oposta. Porque é da mais rigorosa imparcialidade que o Estado republicano extrai sua autoridade ética, nesta época barulhenta. É um valor aí do qual não deveríamos abrir mão.

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    Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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    Publicado em VEJA de 1º de março de 2024, edição nº 2882

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