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Fernando Schüler

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Pacificar o país

Passamos a considerar que uma parte do jogo político não é ‘legítima’

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 9 Maio 2024, 18h51 - Publicado em 2 dez 2023, 08h00
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  • “Passou mal 33 vezes”, diz o irmão. Naquela manhã seca de Brasília, lá pelas 10 horas, no banho de sol da Papuda, não resistiu. Seu nome era Cleriston Pereira da Cunha, o “Clezão”. Esperou por atendimento por mais de meia hora. E se foi. No início de setembro, o Ministério Público já tinha dado parecer favorável à soltura. Ninguém deu bola. Desde o começo do ano já havia laudo dizendo que corria risco de vida. Ninguém deu bola. Depois, mais pedidos da defesa. Nada. O sujeito ficou lá, réu primário, sem antecedentes, sem julgamento, sem ter a quem recorrer. Indo e vindo da enfermaria da Papuda. No fim, perdeu. O “paizão”, na intimidade da família. Alguma indignação, de um lado; silêncio, do outro. Vala comum da nossa polarização política. Para boa parte da imprensa, nem sequer tinha nome. Era mais um desta nova categoria de brasileiros entre aspas: o “bolsonarista”. E por aí basicamente se encerra a questão.

    Sua morte não foi um “acidente de percurso”, como escutei, por aí. Ele estava sob a guarda do Estado, quadro de saúde grave, pedidos de soltura sem resposta. Fatalidade nenhuma, portanto. Mas isso é apenas parte do problema. Aquelas pessoas que invadiram prédios em Brasília não têm foro por prerrogativa de função. Deveriam ser julgadas em primeira instância. Se suas ações naquele domingo foram feitas em conexão com parlamentares, que dispõem de foro, o que pode ter ocorrido, em certos casos, não eram nem de longe ações relacionadas ao “exercício do mandato”. Aquelas pessoas cometeram crimes. Invadiram, depredarem. Sua conduta deve ser individualizada (o que cada um fez, onde estava, quais as provas) e elas devem ser julgadas, com técnica, isenção, devido processo. Se alguém achar que havia um golpe de Estado sendo dado ali, não há problema. De que maneira se define um “golpe”? Havia algum plano de tomada do poder ou apenas um bando de gente correndo e fazendo arruaça? Havia uma força armada, ou apenas uma turba desordenada, tirando selfies, quebrando o que havia pela frente? Há alguma diferença entre dar um golpe e invadir um prédio, danificando objetos de arte e assaltando um caixa eletrônico? Talvez não exista. O mundo da política é feito dessa linha tênue entre o fato e a narrativa. Mas o mundo jurídico, quem sabe, não deveria funcionar assim.

    Daria para ir longe nesse tema. Não é o caso. De algum modo fomos nos transformando em um país do experimentalismo jurídico. A turma não tem “foro privilegiado”? O.k., mas vê lá se há uma interpretação… É proibido censura prévia? O.k., mas e se for uma exceção, ou quem sabe dois ou três anos de exceções? Tem que respeitar a imunidade parlamentar? Será mesmo? O pano de fundo conceitual todos conhecem: a “salvação da democracia”. Em nome dessa ideia se fez de tudo, desde editar o debate eleitoral, punir quem questionava, ainda que educadamente, nosso sistema de votação, até cassar passaportes e bloquear contas bancárias de jornalistas. Ainda agora escutei essa ideia no debate sobre a PEC votada no Senado, proibindo decisões monocráticas, no Supremo, suspendendo leis aprovadas pelo Congresso. “O Supremo salvou a democracia”, escutei, de uma alta autoridade. Dada essa interpretação, com o tempo transformada em um “fato”, em muitos círculos, o Congresso não teria autoridade, ou algo nessa linha, para aprovar aquela emenda à Constituição. Quem sabe o Congresso também não poderia votar uma PEC alternando o instituto da reeleição, ou o tempo dos mandados executivos, ou mesmo a sistemática das medidas provisórias. Teríamos, quem sabe, atingido o ápice de nossa nova democracia: a de um legislativo incapaz de legislar, e um poder fundamentalmente autônomo e sem supervisão externa, na República, capaz de regular a si mesmo, legislar (sobre o aborto? política de drogas?), definir políticas públicas e flexibilizar direitos individuais claramente protegidos pela Constituição.

    “Passamos a considerar que uma parte do jogo político não é ‘legítima’ ”

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    A pergunta crucial: para onde exatamente isso irá nos levar? Pergunta a ser feita a quem tem a responsabilidade de liderar o país. O professor Kevin Vallier, em seu ótimo Trust in a Polarized Age, mostrou como, em sociedades ultrapolarizadas, a confiança na Justiça e nas instituições cumpre um papel essencial. “O que mantém uma sociedade unida”, diz ele, “é a opinião e logo a atitude das pessoas em relação às regras legais e políticas”. Ele está dizendo o seguinte: as pessoas irão aprender a lidar com a fratura, a divergência de ideias, a guerra política. Irão se adaptar aos tempos de cólera em que vivemos, dada a revolução tecnológica, o efeito tribal das redes e tudo que conhecemos. O não aceitável é trapaça. O truque com as regras do jogo. Isto é, serem tratadas com iniquidade. Dois pesos e duas medidas. A lógica “Você perdeu. Que pena. Tenha mais sorte da próxima vez”. Isso é especialmente crucial em um país como o Brasil, com seu baixo índice de confiança interpessoal (última posição na pesquisa global Ipsos 2023, entre trinta países de referência). O professor Vallier recupera um velho ensinamento de Adam Smith, em sua Teoria dos Sentimentos Morais. “As sociedades podem perfeitamente sobreviver sem a beneficência”, escreveu, “mas sem a justiça com certeza serão destruídas”. Smith e Vallier estão distantes por mais de dois séculos, mas o que ambos chamavam de “justiça” é, no fundo, muito parecido. Em uma síntese, uma base de direitos iguais. A imparcialidade nos procedimentos (procedural fairness) e na conduta dos juízes. Há muitas coisas nesse pacote. Não inventar crimes que não existem em lei; não apagar direitos claramente garantidos pela Constituição? Prestar atenção quando um laudo diz “risco de morte”?

    A lista é grande. E talvez bastante exigente. Desde há alguns anos, passamos a considerar que uma parte do jogo político não era exatamente “legítima”. A própria ideia da democracia, por definição um patrimônio comum, foi capturada por um setor da sociedade. Seja como instrumento retórico, seja ajustando prerrogativas legais. Nossa melhor chance, como sociedade, é dar um passo atrás. Desarmar o esboço de estado de exceção, que se criou no centro do poder; renunciar ao controle de opinião; retomar o cuidado com os ritos e garantias legais. E aceitar, de uma vez por todas, que a sociedade é diversa, que há visões de mundo distintas, na política, nos valores éticos, na sensibilidade estética. E que, neste universo fraturado, ou é o direito, ou a guerra.

    A desconfiança surda em relação às instituições pode agradar a muita gente, seja brincando de xerife, seja berrando em alguma rede social. Mas é péssimo para a vida republicana. É por aí que aquela morte na Papuda, que já quase esquecemos, pode nos dar algum sinal. Sinal de que fomos escorregando, que talvez tenhamos já nos acostumado com a morte irrelevante. E isso não pode ser assim.

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    Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

    Publicado em VEJA de 1º de dezembro de 2023, edição nº 2870

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