O país sem ambição
O governo anda obcecado por mais impostos pela simples razão de que não tem muito mais a propor
O governo anda “trabalhando furiosamente para aumentar impostos”, disse o empresário Rubens Ometto. Houve repercussão, o que não deixa de ser curioso. Qualquer um que preste atenção ao país, nos últimos meses, sabe perfeitamente disso. Em uma semana, o governo tenta derrubar a desoneração da folha. Termina cedendo. Depois, tenta arrumar dinheiro mudando a regra de compensação do PIS/Cofins. Sem sucesso. Mais do que isso, o que impressiona é a agenda. A taxação das “blusinhas”, a estranhíssima compra do arroz, a volta dos programas de “incentivos setoriais” — e a obsessão em aumentar impostos. O ministro da Fazenda foi até o papa pedir um imposto global aos “muito ricos”. Coerente. Estranho seria o ministro ir ao papa e pedir mais eficiência no gasto público. Nem rezando.
Tudo é a pontinha do iceberg. O governo anda obcecado por mais impostos pela simples razão de que não tem muito mais a propor. Fazer o “ajuste pelo lado da receita”, de um lado, e voltar aos velhos programas de incentivos, de outro. Logo depois das eleições, o governo fez passar no Congresso a PEC da Transição. Contratou uma autorização para gastar 145 bilhões de reais. E de quebra voltou à indexação do gasto de saúde e educação à receita, além da política de aumento real do salário mínimo, que impacta 39% do Orçamento. O conjunto da obra foi bem definido por uma boa consultoria: a política fiscal é “insustentável”. Nos últimos tempos, parecem claros os sinais de que a política “caça-níqueis” vem se esgotando. Rodrigo Pacheco lembrou ao governo que havia prazos, ao devolver a PEC do PIS/Confins, e era preciso respeitar alguma previsibilidade fiscal. Disse não ser muito inteligente esculhambar com o planejamento das empresas, da noite para o dia, porque o governo precisava de mais 30 bilhões de reais no caixa.
O que intriga é como o país caiu na mediocridade. O Brasil foi capaz de fazer reformas relevantes, em diferentes momentos, na história recente. Agora mesmo comemoramos os 30 anos do Plano Real. Fizemos aquelas privatizações na era FHC, desenhamos uma boa reforma do Estado, criamos as agências reguladoras. E mais recentemente fizemos alguns milagres, como o antigo teto de gastos, as reformas trabalhista e previdenciária e a autonomia do Banco Central. A mediocridade não é o nosso destino, é apenas uma opção. No Brasil de hoje, em primeiro lugar, abrimos mão de qualquer reforma estrutural na máquina pública. A reforma administrativa já vinha fazendo água, desde a gestão passada, e agora foi pelo ralo. Reabrimos a fábrica de concursos públicos, vamos concedendo aumentos aqui e ali, para os servidores, e avança no Senado a PEC dos quinquênios, cuja lógica é dar 5% de aumento a cada cinco anos para os integrantes das carreiras jurídicas do Estado. Se for aprovada, a conta deve ficar em pouco mais de 40 bilhões de reais por ano. E ninguém, por óbvio, faz muita ideia de onde vai sair esse dinheiro. O programa de privatizações igualmente enterramos. Já havíamos aprovado a privatização dos Correios na Câmara, mas subitamente decidimos que é “estratégico” para o país que a empresa seja estatal.
A pergunta relevante, aqui, é sobre o que é realmente estratégico para o país: um punhado de empresas estatais, mudando de comando a cada quatro anos, ou menos, como no caso da Petrobras, com as amarras próprias do setor público, ou um mercado dinâmico de empresas privadas competindo, em uma economia aberta, sob uma boa regulação? Como, aliás, aconteceu com Embraer, Vale, CSN e outras empresas privatizadas. No transe do recuo brasileiro, até mesmo a Ceitec, popularmente conhecida como a fábrica do “chip do boi”, retiramos do programa de privatizações. A empresa nunca produziu nenhum balanço positivo, em seus quinze anos. Mas a questão nem é essa. A pergunta é se cabe ao governo produzir chips. O mesmo a perguntar sobre uma empresa como a EBC, dona da TV Brasil, e tantas outras estatais. Responder a essas questões pode ser uma via de acesso a um país moderno. E talvez esta seja a reflexão que o Brasil deveria fazer.
“No plano do ‘choque do capitalismo’ nos falta consenso”
No zigue-zague brasileiro, o que parece nos faltar é uma convicção modernizadora. O país soube produzir algum consenso, na transição, em torno do tema da democracia (apesar do mau humor atual). E, ao longo dos anos, sobre os mecanismos de transferência e proteção social. O ponto é que, no plano da reforma econômica, o “choque de capitalismo” a que se referiu Mário Covas (e lá se vão 35 anos), não temos consenso. Ainda há pouco saiu a 30ª edição do Índice de Liberdade Econômica, da prestigiosa Heritage Foundation, e o Brasil ocupa um melancólico 124º lugar, entre 176 países. O índice mede exatamente as coisas nas quais deveríamos avançar: direitos de propriedade, segurança jurídica, eficiência e integridade governamental, equilíbrio fiscal, tamanho da carga tributária. Tudo isso que soa como música no mainstream da economia global, que não é contraditório com boas políticas sociais, mas que está longe, muito longe de qualquer consenso na vida brasileira.
O Brasil ingressará em uma curva rápida de envelhecimento. Nosso maior risco é o triste destino dos países que envelhecem sem superar a pobreza. A classe média e os mais ricos se defendem bem, em um país desigual como o Brasil. Contratam escolas privadas, planos de saúde, vão a Gramado tomar chocolate. Abaixo dos 10% mais ricos, porém, nossa renda média cai a menos de 3 600 reais. E depois é ladeira abaixo. E é essa imensa legião de pessoas que demanda um Estado que funcione. Vai aí, quem sabe, nosso grande problema: quem toma as decisões, em Brasília, já está bem servido pelo Estado. Anda no teto do funcionalismo, tem estabilidade; ganha os 5 bilhões de reais do fundão eleitoral; tem os 51 bilhões de reais para distribuir em emendas. Tudo isso que sabemos. O problema é o “brasileiro comum”. O “resto”, como escutei tempos atrás. É para ele, na minha visão, que o Brasil deveria avançar em um claro programa de reformas. Paulo Tafner e Fabio Giambiagi acabam de lançar um ótimo livro sobre a nova reforma da previdência que vamos ter que fazer. Vale o mesmo para a reforma do Estado, que exige coragem para ser feita. É um modo de sair da modorra. Recuperar a ambição que em alguns momentos parecemos ter. Para andar para a frente e não de marcha a ré, como parecemos estar fazendo.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897