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Os pais tentam reagir à imposição de agendas políticas

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 dez 2023, 08h46 - Publicado em 16 dez 2023, 08h00

“Depende do contexto”, respondeu a reitora da Universidade da Pensilvânia, Elizabeth Magill, no Congresso americano, sobre achar admissível a defesa “genocídio de judeus” na universidade. Acabou renunciando. Numa alegação puramente formal, seria possível sustentar que a retórica de ódio, desde que não leve diretamente a uma ação contra esse ou aquele grupo, está protegida pela Primeira Emenda, que garante a liberdade de expressão. Mas não era isso que estava em jogo. Se a pergunta fosse “Você considera admissível pregar o genocídio contra mulheres, transexuais ou pessoas negras na universidade?”, é difícil imaginar que a reitora (ou qualquer pessoa razoável) fizesse a relativização. A conclusão é a de que o antissemitismo seria menos “problemático” do que outras formas de ódio e preconceito. E aí chegamos a um limite que jamais deveria ser cruzado.

O limite foi alcançado quando a retórica seletiva sobre a discriminação saiu do universo do campus e foi para o Congresso. Para o grande debate na sociedade. É algo comum no universo da cultura woke. A cultura que percebe cada pedaço da vida a partir da dicotomia “oprimido, opressor”, e cujo foco obsessivo são os tradicionais critérios de gênero, raça e orientação sexual. Nessa lógica, pouco importa que o Hamas praticou um ataque selvagem a Israel. Na maquininha de enquadramento do ativismo woke, Israel é o “opressor”, aliado do Ocidente. E a violência do outro lado um tipo de “reação”. Ou ainda: uma reação justificada, quiçá de “inteira responsabilidade de Israel”, como defenderam grupos estudantis em Harvard e outras universidades. O resultado, todos assistimos. Uma penca de mantenedores retirou suas doações das universidades. Niall Ferguson resumiu a questão dizendo que as simpatias do progressismo woke com um movimento terrorista, como o Hamas, “vai ajudar muita gente a abrir os olhos”. Parar com a “complacência”. E talvez seja um ponto de inflexão no radicalismo político algo insano que vivemos nos últimos anos. É possível que Ferguson tenha razão. David Rozado se notabilizou mostrando como os temas de “justiça social”, associados à “homofobia”, “racismo”, “transfobia”, dispararam nas manchetes dos grandes jornais a partir dos anos 2010. Agora os ventos mudaram. O próprio Rozado publicou uma nova rodada de pesquisas mostrando que aqueles temas perderam terreno. “A terminologia woke está em declínio”, diz ele. Caiu drasticamente a procura por executivos de “diversidade” nas empresas; corporações importantes, como a Disney, pisaram no freio na histeria woke, dizendo que “é preciso escutar e entender o que as pessoas de fora estão dizendo”, em vez de impor uma agenda. E mesmo os cancelamentos por razões ideológicas apresentaram um recuo.

“Os pais tentam reagir à imposição de agendas políticas”

Explicar esse fenômeno nos faz voltar ao tema dos limites. Causou certo frisson, ainda agora, pesquisadores ingleses anunciando que o imperador romano Heliogábalo, no século III, era na verdade uma mulher trans. Notícias como essa, seguidas da derrubada de estátuas, proibição de palavras, obsessão com pronomes, censura ao humor, passaram a pipocar no mundo-mídia. Gradativamente, uma agenda legítima de inclusão foi se convertendo em um radicalismo avesso ao bom senso. A partir daí, a reação difusa na sociedade. Muitos intelectuais tomaram a frente, mas a reação mais importante vem das pessoas comuns. Ela é mais lenta e muitas vezes começa pelos motivos e acontecimentos mais triviais. Foi o caso da reação àquela questão pateticamente ideológica, no último Enem, sobre o agronegócio. A cada semana observo esse conflito silencioso nas escolas, onde os pais tentam reagir à imposição de agendas políticas. Por vezes é a imposição de uma educação “étnico-centrada”; outras vezes é a insistência nos temas de gênero, enviesados; em outros casos é a mais pura mesquinharia, como vi ainda nesta semana em uma escola bacana de São Paulo proibindo uma foto das crianças com aqueles gorrinhos de Papai Noel, para celebrar o fim de ano, no que seria uma inaceitável “manifestação religiosa”. “Era só uma foto de gorrinho, não uma missa. Mas cancelaram”, me disse, desanimada, a mãe de uma aluna. O que se observa nesses casos é uma marca de nossa época: a dicotomia entre a cultura dos ativistas e os valores do common sense. Uma pesquisa mostrou que os “ativistas progressistas” são apenas 8% da sociedade americana, mas 80% são ativos no mundo digital. Vale o mesmo para os “ultraconservadores”. Entre os “moderados”, no entanto, que somam perto de 80% da população, apenas 19% têm engajamento, e não por acaso são chamados de “maioria silenciosa”. Ou “exausta”, nome sugestivo dado pela pesquisa. Vai aí uma situação curiosa. Se você julgar a sociedade a partir do que lê nas redes sociais, terá uma visão distorcida e radical do que se passa. Algo similar acontece nas organizações. A maioria dos funcionários é feita de pessoas abertas e razoáveis, dispostas ao diálogo. Mas quem dá o tom é o militante. Ele sabe esgrimir argumentos, formar comitês. E por nada desse mundo revisará seus bem consolidados pontos de vista. Ao contrário, ele terá certeza de que todos que pensam de maneira diferente vivem em algum tipo de “erro”. E, como tal, precisam ser corrigidos.

Vai aí um desafio. Em especial, na educação. Ele foi formulado por Fareed Zakaria, dizendo que as universidades deveriam abandonar sua “desastrada incursão na política” e reconstruir suas “reputações como centros de pesquisa e aprendizagem”. A sugestão é ótima, mas faço um adendo: universidades são feitas de pessoas adultas, que sabem se virar sozinhas. O inaceitável é que a doutrinação seja feita nas escolas, com crianças sem capacidade de se contrapor à “autoridade intelectual” de um professor. Foi esse o ponto de Weber em A Ciência como Vocação. Weber faz seu argumento iluminista, segundo o qual não cabe ao professor agir como “profeta ou demagogo”, nem usar sua autoridade diante de alunos. Cada um que fique com suas crenças. Mas tirem as mãos de nossas crianças.

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Conversando com os pais de alunos, angustiados com o que se passa em nossa educação, sempre me dou conta: o que eles desejam não é uma escola “conservadora” ou “progressista”. Que induza crianças e adolescentes a essa ou àquela orientação sexual ou a alguma crença moral que paira na cabeça de uma minoria ativista. Desejam uma escola voltada para o conhecimento e espírito crítico. Para o human flourishing, na tradição iluminista de Von Humboldt, Mill e Isaiah Berlin. O direito irrenunciável à autonomia individual, nossa melhor herança moderna. Da qual somos herdeiros. E, mais importante, somos fiadores de sua preservação e cultivo, para os que vêm à frente.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 15 de dezembro de 2023, edição nº 2872

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