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O emoji golpista

O que impressiona no episódio da ação contra empresários é seu aspecto fantástico. É como se as teses conspiratórias migrassem para o seio do Estado

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 21 out 2022, 10h21 - Publicado em 3 set 2022, 08h00

Emoji é uma daquelas figurinhas de WhatsApp e mídias eletrônicas. Por vezes usamos um como o polegar levantado, dizendo “o.k.”, outras vezes aquelas palminhas, podendo seu significado variar. Lembro de uma história que escutei sobre Einstein, no seu período em Princeton, já uma celebridade mundial. As pessoas o paravam no câmpus da universidade e ele tinha o hábito de concordar com tudo o que elas diziam. Perguntado sobre por que ele fazia isso, explicou: “Para elas irem embora logo”, e abriu um largo sorriso. Nunca soube se a história era verdadeira. Mas era boa. No Brasil de hoje tudo isso ficou tremendamente sinistro. Você pode fazer como Einstein e concordar com uma frase “perigosa”, em uma conversa no WhatsApp. Seu amigo pode escrever que adoraria viver em uma ditadura, e você colocar lá uma emoji com o polegar levantado. E, a partir disso, ser objeto de uma extensa ação repressiva do Estado brasileiro. Sigilo bancário quebrado, contas bloqueadas, banimento das redes, vexame público. Isso tudo pode parecer má ficção científica, ou um filme de terror de segunda categoria. Mas não é. É exatamente o que está acontecendo no Brasil de hoje. Na nossa grande democracia, da qual um dia tanto nos orgulhamos.

Os fatos são conhecidos. Na decisão sobre o episódio, agora divulgada, descobrimos que a ampla operação do Estado foi deflagrada com base em uma reportagem de jornal. Descobrimos que aquele papo de WhatsApp foi tido como “apontando uma organização criminosa de alta periculosidade”. Descobrimos a existência de crimes como “atacar integrantes de instituições públicas”, “gerar animosidade dentro da própria sociedade”, “promover o descrédito dos poderes da República”, que parecem mostrar que a Lei de Segurança Nacional, em que pese abolida, continua bem viva no coração do Estado. Descobrimos que ser um “empresário” é um estranho tipo de agravante para nosso Judiciário; que “distribuir bandeirinhas do Brasil em um shopping” pode ser uma atitude altamente suspeita; e que, por fim, é uma exigência republicana investigar cidadãos que “preparam” os atos do próximo 7 de Setembro.

Ler essas coisas em um documento da Suprema Corte me fez lembrar de tantas coisas que acreditamos sobre o Brasil nesses trinta e tantos anos de Constituição, e pensar sobre como chegamos até aqui. Uma das explicações vem do que gosto de chamar de “democracia do excesso”. A era da exasperação política, da entrada desordenada de milhões de pessoas no debate público, da chegada da “insuportável nova direita” ao poder. O grande mestre James Madison já havia nos prevenido contra essas coisas, 200 anos antes de nossa atual revolução tecnológica. “A natureza dos governos eletivos”, disse ele, “exige maior liberdade de animadversão do que seria tolerada em um governo como o da Grã-Bretanha.” Animadversão é uma palavra hoje esquecida, mas tem um sentido muito claro: animosidade, ódios recíprocos, radicalismo retórico. Para funcionar, a República deveria saber viver com os excessos no uso da palavra. Com o “abuso”, que é próprio do uso de qualquer coisa. Nos dias de hoje, a animadversão explodiu, o que é ótimo para a democracia, porque significa que milhões de pessoas ganharam o direito à palavra. Mas fez também crescer o barulho, que é parte indissociável da nova natureza, ou quem sabe da estética das democracias digitais. Se não entendermos isso, em pouco tempo faltará espaço, em Brasília, para dar conta do aparato estatal de controle de opinião. E, por irônico que seja, em vez de chegarmos à “Alemanha dos anos 30”, como tantas vezes li em frases de efeito criticando nosso “novo fascismo”, chegaremos à Alemanha dos anos 1980. Só que a Oriental, feita de tipos como Gerd Wiesler, o agente cuja tarefa era bisbilhotar os cidadãos “suspeitos”, no magistral filme A Vida dos Outros.

“É como se as teses conspiratórias migrassem para o seio do Estado”

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O que impressiona nesse episódio todo é seu aspecto fantástico. É como se as teses e elucubrações conspiratórias migrassem de seu hábitat, as bolhas digitais, para o próprio seio do Estado. Me fez lembrar de Jean Baudrillard e sua ideia da permanente tentação da irrealidade e ao “simulacro” na política contemporânea. Então um sujeito qualquer diz “prefiro um golpe”, em um grupo no WhatsApp, isso se conecta com a frase do presidente sobre fraudes nas urnas, dita em alguma live ou batendo boca com um youtuber, coisa que por sua vez se conecta com a tese de um professor americano de que as democracias morrem de tudo o que é jeito, em geral quando não gostamos do governo, e tudo vai no embalo de um cartaz solitário, insistentemente mostrado pelos jornais, dizendo “Intervenção já”, na Praça dos Três Poderes, e quem sabe ainda em um discurso fantástico de um ministro do Supremo sobre voos da FAB visando quebrar janelas do STF. Como em um road movie montado com cacos de informação, vamos tecendo um tipo muito estranho de irrealidade, feita de colunas de jornal, alertas, manifestos. E medo. Na prática, vamos ressuscitando o velho Baudrillard, que um dia conheci comendo um bom churrasco, numa noite fria de Porto Alegre, me explicando sobre a voracidade infinita do virtual sobre o real, na “hipermodernidade”.

O problema da irrealidade é que ela cobra um preço. Da sensação de que vivemos à beira do abismo, passou-se a justificar qualquer agressão a direitos individuais. O medo é assim: funciona como convite à “racionalização” de atitudes que antes tomaríamos como inaceitáveis. Por isso que é preciso parar e refletir, e muita gente já vem fazendo isso. Muitas pessoas dizendo que as “coisas passaram do ponto”, e que não se deve combater o autoritarismo ao custo de valores elementares da própria democracia. Alguém poderia perguntar por que há tanta gente preocupada com um grupo de pessoas, no WhatsApp, feito de gente rica e, pior, bolsonarista. A resposta é simples: porque essa é a virtude de uma democracia liberal: a agressão aos direitos de um solitário indivíduo significa a agressão aos direitos de todos. E porque ninguém deve ser julgado, no estado de direito, pela sua adesão a um ou outro credo político.

A única via brasileira para sair desse imbróglio é retomar nossa normalidade constitucional. Desinstalar o incipiente estado de exceção que vai ganhando corpo no seio da República; recusar o Estado tutor da consciência; repelir a censura, a começar pela censura prévia; aceitar de uma vez por todas que não cabe a nenhuma autoridade dizer o que é a verdade, nem fazer entrar pela porta dos fundos de nosso mundo jurídico o delito de opinião. Fazer valer o que está escrito em nossa Carta de direitos, em vez de inventar a cada momento uma Constituição ao gosto de quem detém o poder.

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É isso, no fundo, o sentido de uma democracia que também se quer liberal. O ponto a partir do qual podemos viver em paz, em uma grande sociedade aberta, onde as pessoas postem emojis sem medo, a diversidade de visões seja vista como virtude e a liberdade, um valor que ninguém está disposto a negociar.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 7 de setembro de 2022, edição nº 2805

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