Achei sensacional a decisão do Elon Musk de instalar a nova unidade da Tesla em Antares, no meu Rio Grande. Tenho uma memória afetiva da cidade, dos Cambará, daquele mundo heroico que hoje se tornou moderno, com alto capital humano, tecnologia e uma rede de universidades no entorno. Os ganhos são evidentes. Haverá muito emprego, o poder público vai arrecadar mais e com isso (se os políticos não fizerem muita besteira) melhorar a vida da cidade. A empresa vai investir em infraestrutura e haverá um boom no comércio, na área tecnológica e mesmo no turismo. Só tem um problema. Vai aumentar a desigualdade. Com uma penca de executivos, novos empreendedores, engenheiros e fornecedores indo para lá, a diferença entre a renda média do “top 1%” da cidade e os 50% com menor renda vai aumentar. Isso inflamou o debate da cidade. Surgiu inclusive um movimento “contra a desigualdade”, que listou 442 itens em que as “disparidades econômicas” irão crescer. Uma escola americana para atender as famílias estrangeiras? Aumento da assimetria educacional. Restaurante Michelin abrindo na cidade? Mas e a disparidade gastronômica? O pessoal favorável diz que nada disso tem importância. Não vai ter mais emprego? Investimento? As chances das pessoas não vão aumentar? O movimento não arreda pé. E seus gráficos são poderosos: a diferença entre a renda do primeiro e do último decil de renda vai mais do que dobrar. Não tem jeito. A confusão está armada.
Infelizmente, é tudo ficção. Antares só existe na obra fantástica de Érico Veríssimo, ainda que seja verdade que faça parte de minha memória afetiva. Mas o debate que a história sugere é perfeitamente real. Me dei conta disso quando lia, por esses dias, sobre mais um desses “movimentos contra a desigualdade”, que surgem por aí de tempos em tempos. A retórica sobre a “desigualdade” se tornou um carro-chefe de boa parte de nosso mundo político. Ainda agora, na cúpula do Brics, Lula disse que “o mundo está cada vez mais desigual”, com a riqueza “concentrada nas mãos de menos gente e a pobreza de mais gente”. A frase vale tanto quanto bolinhas coloridas. A pobreza global, medida pelo número de pessoas que vivem com menos de 2,15 dólares ao dia, caiu 78% de 1990 para cá, segundo dados do Banco Mundial. A quantidade de crianças sem educação primária caiu 38%, e há uma tonelada de dados nessa mesma direção. Mas esse não é o ponto. A retórica da “desigualdade” é onipresente, e cumpre um papel político. Mas ela faz sentido? Ela realmente diz respeito a algo que consideramos eticamente crucial, ou é apenas um tipo de retórica que pega bem em uma reunião do Brics, numa campanha ou naquele movimento barulhento que afugentou o Elon Musk de Antares, na minha história?
“É o caminho mais difícil: superar com urgência a pobreza”
Quem percebeu isso com rara clareza foi o filósofo Harry Frankfurt, de Princeton, falecido no mês passado. Em um magnífico livro, chamado The Importance of What We Care About, Frankfurt faz a pergunta: haveria algum problema com a diferença de renda entre pessoas de classe média, que levam uma boa vida, e os ricos ou muito ricos? Vamos imaginar. Haroldo é meu colega professor e ganha 10 000 reais, um pouco acima da renda média dos 10% mais ricos no Brasil. Luciano joga no Flamengo e ganha vinte vezes esse valor. Alguém acha que existe um problema ético na diferença entre a renda dos dois? Luciano tem acesso a certos luxos de que Haroldo não dispõe. Pode ir a uma balada em Ibiza, o que é basicamente irrelevante. Haroldo terá de fazer contas e comprar a prazo, se quiser viajar, mas terá uma chance real de crescer, pôr os filhos em uma boa escola e viver uma vida com significado. E é isso o essencial.
O problema surge quando colocamos os mais pobres na equação. Quando pensamos em João, que trabalha na construção civil, recebe um salário-mínimo e os filhos estudam em uma escola ruim, não tem a mais remota relevância que a diferença de sua renda seja de 9 000 reais, em relação a Haroldo, ou 199 000 reais, em relação a Luciano. O problema é que ele não tem o suficiente para viver a vida que merece viver. Não tem chance de crescimento, vive na angústia de fechar as contas do mês e o bairro em que mora não tem a mínima infraestrutura. Sua situação nada tem a ver com a melhor ou pior condição dos demais. Ela é em si mesma o problema, e é nisso que deveríamos concentrar nosso foco, diz Frankfurt.
“Não é sexy falar em pobreza”, me disse um colega, um tanto irônico. Nelson Rodrigues teve a mesma intuição, dizendo nunca ter visto uma “passeata de analfabetos” no Brasil. Os muito pobres estavam fora do jogo. O barulho em torno da desigualdade vai na mesma toada. Gera algum frisson, no mundo político, mas nos desvia do essencial: como melhorar de fato a condição de vida dos mais pobres. Como formar pessoas, urbanizar áreas degradadas, que chamamos de “favelas”, “vilas”, “comunidades”, onde a propriedade não é regularizada, os serviços de infraestrutura não chegam e a violência é o pão de cada dia. Por esses dias, me surpreendi (não deveria) observando a ausência de qualquer ideia ou programa estruturado sobre como resolver o problema da favelização no Rio de Janeiro, o mesmo ocorrendo em boa parte do país. É o mesmo com os 30 000 ou 40 000 moradores de rua em São Paulo. Apenas com o recurso que torramos com o inútil fundão eleitoral, ou o benefício fiscal dado alegremente às empresas aéreas ainda há pouco, dava para gerar uma solução estrutural para o problema daquelas pessoas. Se, por óbvio, alguém estivesse efetivamente preocupado com isso, o que eu realmente duvido.
Se alguém quiser se preocupar com a riqueza, uma boa dica é observar como ela é produzida. Quando o empreendedor israelense Uri Levine criou o Waze, em 2007, melhorou a vida de meio mundo, ajudando as pessoas a se orientarem no trânsito de nossas cidades. É por isso que, seis anos depois, o Google comprou o aplicativo por 1,1 bilhão de dólares. Levine virou bilionário, é possível que tenha aumentado a desigualdade de renda em Israel, mas e daí? Ele produziu uma enorme quantidade de valor em uma economia aberta, e é esse o padrão de geração de riqueza que devemos celebrar. Coisa inteiramente diferente é a riqueza que vem do lobby em Brasília que inventou os cupons para comprar carro zero, ou a superelite do setor público, ganhando acima do teto constitucional. É com essa riqueza, fruto da captura, do compadrio político, e não da geração de valor na sociedade, que deveríamos nos preocupar.
Erradicar a pobreza é o desafio civilizatório de nossa época, tanto quanto foi o fim da escravidão, no século XIX. Kwame Appiah diz que a escravidão só sucumbiu quando perdeu sua “dignidade”. É isso. O que hoje nos causa horror um dia foi tratado como digno por boa parte de nossa elite. Talvez deva ser assim com o tema da miséria. Enquanto não compreendermos a indignidade de um país com 33% das pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, não iremos muito longe. Por isso me lembrei de Harry Frankfurt. Enquanto todos parecem excitados olhando para os lados, fazendo retórica fácil, ele sugere mergulhar na vida real dos mais pobres. Dignificar não a pobreza, mas a urgência de sua superação. É o caminho mais difícil, e o mais sem graça, no mundo do entretenimento político. Mas é o que nos pode devolver alguma civilidade, como país.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 25 de agosto de 2023, edição nº 2856