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Duas tradições

O ponto central é não dar ao Estado a prerrogativa de censurar

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 19 fev 2022, 08h00

Era uma quarta-feira de abril, em 1977, quando David Goldberger, advogado judeu da American Civil Liberties Union (Aclu) em Chicago, recebeu uma ligação de Frank Collin, líder do partido nazista americano. Ele reclamava que seu grupo estava sendo proibido de fazer uma manifestação em Skokie, localidade perto de Chicago, e queria que a Aclu defendesse seus direitos à expressão, garantidos pela Primeira Emenda à Constituição.

Collin explicou que eles iriam vestidos com os uniformes nazistas e que tudo demoraria coisa de trinta minutos. Goldberger ouviu com atenção e de cara achou que aquele era um caso essencial para os princípios da Aclu. Topou representar Collin e os nazistas. Antes, pediu o o.k. de Ed Rothschild, conselheiro-geral da Aclu, e obteve seu apoio: “Você deve assumir este caso”, disse Rothschild, imaginando o barulho que viria à frente.

Skokie era a comunidade com maior número de sobreviventes do Holocausto nos Estados Unidos. As autoridades locais proibiram a marcha e o caso foi à Suprema Corte, que determinou que a decisão fosse revisada. Goldberger recebeu ameaças e alguns ovos, na porta de casa, mas ganhou o jogo. É provável que hoje fosse “cancelado”. Mas diz jamais ter se arrependido de sua decisão.

A Aclu era presidida por um outro intelectual judeu, Aryeh Neier, que mais tarde fundaria o Human Rights Watch. Neier, Goldberger e Rothschild nos contam uma história emblemática do século XX: foi um grupo de brilhantes advogados judeus que se bateu pelo direito à expressão do partido nazista americano, nos anos 70, ajudando a consolidar a tradição da Primeira Emenda e sua garantia do direito à livre expressão.

Anos depois, o Brasil trilharia um caminho muito diferente. Seu ponto culminante foi a decisão tomada pelo STF, em 2003, negando um habeas corpus a Siegfried Ellwanger, historiador “revisionista” do Holocausto. Os livros editados por Ellwanger, ao longo dos anos 90, apostavam em toda a sorte de delírios conspiratórios, do tipo “os judeus estavam por trás da escravidão no Brasil”, e eram as “forças ocultas”, referidas por Getúlio. Ainda me lembro de encontrar seu Holocausto: Judeu ou Alemão? nos sebos de Porto Alegre a preços de banana.

Ellwanger foi condenado pela Justiça do Rio Grande do Sul e recorreu ao Supremo. Foi derrotado pela maioria. O ministro Carlos Ayres Britto ficou com a minoria. Em seu voto, diz que os livros de Ellwanger expressavam uma ideologia e que isso não era crime. Podia ser “uma desgraça que alguém se deixe enganar” por certas ideologias, mas que isso tinha respaldo na Constituição, que “faz do pluralismo político um dos fundamentos da República”.

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O ministro Marco Aurélio Mello disse que o direito à liberdade de expressão servia como uma “trincheira do cidadão”, particularmente quando ele expressa “ideias radicais e minoritárias”. Fez a defesa mais próxima que conheço, aqui nos trópicos, de uma visão alinhada à cultura da Primeira Emenda. Disse que haveria crime se Ellwanger, “em vez de publicar um livro (…), distribuísse panfletos nas ruas de Porto Alegre dizendo vamos expulsar estes judeus do país”. Aproxima-se do clássico critério de Oliver Holmes, na Suprema Corte: o discurso deve ser livre caso não represente “perigo real e imediato” aos demais.

“O ponto central é não dar ao Estado a prerrogativa de censurar”

A marcha de Skokie e o julgamento de Ellwanger são casos emblemáticos de duas tradições. Duas formas de tratar a liberdade de expressão. Cada um pode julgar qual das duas é a mais acertada. Nem Goldberger, nem Aryeh Neier, por óbvio, tinham qualquer simpatia pelo nazismo, e tão pouco Ayres Britto e Marco Aurélio Mello, pelo revisionismo. A questão sempre foi sobre princípios, e continua nos desafiando: é melhor permitir o livre mercado de ideias ou a tutela do Estado sobre a opinião?

Ambas as tradições andam hoje sob fogo cruzado. Nos Estados Unidos, a Primeira Emenda continua de pé, mas as coisas vão mudando na sociedade. Intelectuais tão distantes quanto Noam Chomsky e Steven Pinker alertam sobre a emergência de uma “sociedade intolerante”, em que “editores são demitidos por publicar livros controversos; jornalistas impedidos de escrever sobre certos assuntos e professores investigados por citarem em aula obras de literatura”. As redes sociais, um dia ditas como “ágoras digitais”, praticam censura, a começar pelo ex-presidente americano. A chegada de Trump ao poder é vista como ponto de inflexão. Diante da “nova direita”, a liberdade de expressão se tornou tóxica. Mesmo a Aclu mudou. Goldberger observa que seus líderes se preocupam mais, hoje, em “seguir causas progressistas do que manter princípios” e que “os progressistas estão deixando para trás a Primeira Emenda”.

Para Goldberger, o ponto central é não dar ao Estado a prerrogativa de censurar. Proteger as piores ideias tem uma lógica: garantir que todas as demais ideias, que são melhores do que as piores, estarão também protegidas. O Brasil de hoje é retrato disso. Enquanto batemos boca sobre a ideia sem nexo de permitir um partido nazista, nossa “democracia de tutela” anda de vento em popa. Manda-se prender jornalistas por “ameaças ao estado de direito”; blogueiros são censuradas por “não dizer a verdade” sobre as urnas eletrônicas; e discute-se abertamente banir o Telegram, rede social utilizada por 50 milhões de brasileiros, para “combater fake news”.

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O tema da liberdade de expressão é difícil porque não há encaixe, em última instância, no universo das escolhas éticas. Vivemos em um mundo cindido, marcado pelo que Isaiah Berlin chamou de “pluralismo objetivo”. Há diferentes respostas, não raro incompatíveis, para diferentes questões. Que ordem de valores iremos priorizar? A liberdade individual? A imposição de padrões de “respeito”? Que discursos, exatamente, iremos proibir? Defesa de ditaduras? Qualquer uma? A defesa de regimes que promoveram a tortura ou genocídio? Qualquer um? Não é difícil perceber a ausência de acordo, em uma sociedade plural, sobre essas questões.

Alguém pode considerar que defender a liberdade de expressão para ideias absurdas é uma indesculpável perversão. Todos escutamos adjetivos nessa linha na outra semana. Podemos até mesmo achar que “defender o direito à expressão de ideias absurdas” e “defender ideias absurdas” é a mesma coisa, contrariando toda a história da liberdade de expressão na modernidade. Ou que nós, brasileiros, e nossa democracia de tutela, somos o caminho da civilização, enquanto a tradição da Primeira Emenda e a Suprema Corte Americana, a barbárie.

Tudo é possível. Diferentes respostas, como ensinou Berlin, habitam o universo moral, e o pluralismo vive no coração da República, como lembrou Ayres Britto. Por aí, quem sabe, encontramos um caminho.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777

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