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Fernando Schüler

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Como viver juntos

A democracia é uma grande invenção, mas cobra um preço. O maior deles é a renúncia da violência em favor da persuasão

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 13h17 - Publicado em 30 jul 2021, 06h00
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  • Atacar estátuas virou moda de uns anos pra cá. Os alvos principais, nos Estados Unidos, foram os heróis confederados. Logo depois, a coisa cresceu. George Washington e Abraham Lincoln caíram em Portland; o genocida Cristovão Colombo perdeu a cabeça em Boston. Até Mahatma Gandhi, acusado de racismo, dançou. Decapitado, foi parar em um depósito. Só restaram os pés, com aquelas sandálias, no pedestal de um parque de Davis, na Califórnia.

    Tudo isso é parte da hiperpolitização da vida atual. O passado entrou na roda. Velhos fantasmas se tornam atores políticos e voltam a assombrar. Há quem veja isso como natural. Erin Thompson, historiadora americana, deu de ombros: “Monumentos são derrubados desde sempre”. Há 2 600 anos, em estátuas assírias já se liam maldições do tipo “Quem derrubar a minha estátua sofrerá por toda a eternidade”. A reforma e a Revolução Francesa assistiram, por razões distintas, a surtos de iconoclastia. Todos se lembram das imagens do Talibã explodindo os Budas de Bamiyan e, mais recentemente, a barbárie do Estado Islâmico na cidade de Palmira, na Síria

    Há mesmo quem veja a vandalização como um tipo de arte. Monumentos vandalizados receberiam um novo significado, e poderiam até melhorar por causa disso. Um bom amigo foi nessa linha, no recente episódio da queima do Borba Gato. “A estátua deve ficar lá, chamuscada”, ele me disse. Ela contará a história do bandeirante e também do “genocídio” bandeirante. A obra se torna coletiva. O vândalo surge como o artista e encontra sua dignidade.

    O argumento não é estranho à história da arte. Alguém poderia dar um beijo com batom vermelho em um quadro de Andy Warhol (como de fato aconteceu), ou quem sabe entrar no Museu do Prado e passar uma gilete no pescoço de uma das meninas, de Velásquez. Aquilo não expressa, afinal, a monstruosidade do império espanhol? O artista tem lá suas razões. Eu me lembrei de Tom Wolfe: “Toda arte demanda uma teoria que a sustente”.

    Há um lado poético aí, mas também um problemão. Algo que de alguma forma explica o passado serviria também de norma para o futuro? Estamos mesmo dispostos a admitir a legitimidade dos novos artistas? O fogo parece ser seu instrumento de trabalho preferido, mas não se deve ter preconceito aí. A história está aí para ser escrita e reescrita infinitamente, não é mesmo? Em Bristol, a turma decidiu retirar a estátua do traficante de escravos Edward Colston do mar, onde havia sido jogada, e deixar a dita-cuja exposta, devidamente vandalizada, e deitada, nunca de pé, em um museu. Para alguns, a obra perdeu potência. O fundo do mar seria seu lugar perfeito. Uma consulta pública foi aberta. Seu destino é incerto.

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    A intervenção, na arte, é um tipo de apropriação. Você vai lá e redefine um objeto ou espaço qualquer a partir de seus próprios critérios. Supõe um risco. Se você for genial e as pessoas acreditarem nisso, o.k. Você dá um jeito de pintar um bigode na Mona Lisa, no Louvre, e entra para a história da arte. Se não colar, vai em cana. Quem define essas coisas? Nossas sociedades democráticas definiram que as escolhas sobre a arte e os espaços públicos devem seguir certas regras, respeitar a autoria e a decisão por meio de instituições. Disse isso dias atrás e alguém retrucou que soava meio “insípido”. Era uma crítica, mas concordei. As regras da democracia são mesmo insípidas. E lentas. E em geral chatas pra caramba.

    Este é o debate em torno da fogueira do Borba Gato. Não se trata de uma discussão sobre se ele merecia ou não aquele destino. Se a obra do escultor Júlio Guerra foi escolhida em uma seleção pública (como de fato foi), se era arte popular, kitsch ou apenas um “bonecão”, como as crianças da minha época se referiam àquela figura gigante. Seria o mesmo se o debate fosse sobre o Duque de Caxias, dom Pedro II ou Getúlio Vargas, para citar alguns dos tipos mais homenageados por aí. Caxias não comandou uma guerra genocida no Paraguai? Dom Pedro não reinou meio século sobre um império escravocrata? Getúlio não fechou o Congresso durante quase uma década e mandou Olga Benário morrer em um campo de concentração? Mesmo assim, há quem argumente, legitimamente, que monumentos associados a essas pessoas são cicatrizes que devem ficar por aí, de modo a nos fazer lembrar e pensar criticamente sobre o passado.

    “A democracia foi inventada para que as pessoas não quebrem as coisas”

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    Pode-se concordar ou não. Meu ponto é outro. É a respeito de como deve ser tomada uma decisão sobre a cidade. Analogias com a derrubada de estátuas de Hitler, no fim da guerra, ou a tomada da Bastilha, em 1789, são falácias de colégio. Não estamos em guerra ou em uma monarquia absolutista. Vivemos em uma democracia. Ela é cheia de defeitos, mas é o método que escolhemos para tomar decisões coletivas. Método erguido a duras penas, quando fizemos a transição dos anos 80, a Constituição, as legislações inclusivas que temos hoje, como a política de cotas, o Prouni, o BPC, a Lei Maria da Penha.

    A democracia é uma grande invenção, mas cobra um preço. O maior deles é a renúncia da violência em favor da persuasão. Você terá de convencer os outros se quiser fazer valer sua ideia. Terá de argumentar, escrever, propor uma lei, se quiser meter a mão no espaço público ao qual os outros (por terrível que pareça) têm o mesmo direito. A pergunta incômoda é a seguinte: os grupos que se autoproclamam no direito de queimar ou fazer sumir alguma coisa da vida do bairro, da praça ou da história estão dispostos a conceder o mesmo direito aos que pensam de maneira oposta?

    O debate é sobre uma antiga questão. Sobre como nós, que fazemos parte (e nos orgulhamos disso) de uma sociedade plural, marcada por uma fratura incurável nos mundos da ética e da estética, podemos viver juntos. Viver em um pacto onde cada um abre mão de ser o juiz do que pode ou não pertencer ao espaço comum. Há inúmeros exemplos nessa direção. Agora mesmo, em Nova York, decide-se retirar a estátua icônica do presidente Theodore Roosevelt ladeado por um homem negro e um indígena da entrada do Museu de História Natural. Muitos foram contra, outros a favor. Não importa. Houve debate e persuasão, não pneus queimando.

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    No fundo, esta é a escolha. Como costuma dizer um velho amigo, a democracia foi inventada para que as pessoas não fiquem quebrando as coisas ou se matando por aí. É uma boa maneira de viver, mas exige alguma renúncia de cada um, além de dar um trabalho danado.

    Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

    Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

    Publicado em VEJA de 4 de agosto de 2021, edição nº 2749

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