As lições do Chile
Constituições demandam consensos amplos e limitados, e servem fundamentalmente para proteger a liberdade e a igualdade de todos diante da lei
O rechazo ganhou no Chile e o que seria a fantástica nova Constituição da América Latina foi parar em uma gaveta. Mas ficará na história. Será lembrada como a primeira Constituição ativista. Identitária, progressista, ambientalista, antissexista, antipatriarcal, indigenista, animalista. E feita do amor às palavras. São exatas 49 637, seis vezes mais do que na Constituição dos Estados Unidos. Não há problema com os ativistas. Eu mesmo já fui um deles, lá pelos meus 20 anos. O problema é o “ativista fora do lugar”. O sujeito que se põe a formatar a sociedade a partir de sua visão de mundo muito particular. A fazer “engenharia social”, ou ainda, como nesse caso, uma superengenharia social. Regulando as palavras que devemos usar, definindo as “identidades” merecedoras de mais ou menos direitos, o padrão correto de desigualdades econômicas, e mesmo coisas mais sublimes, como reconhecer “a espiritualidade como um elemento essencial do ser humano”, como se lia no projeto chileno.
Lendo aquele texto quase infinito, tive a sensação de me perder no paraíso. “Direito à moradia”, ao “ar limpo”, à “alimentação saudável e culturalmente pertinente”, ao acesso à internet, à “educação sexual integral”, ao uso de “sementes tradicionais”, a uma “morte digna”. E à “igualdade substantiva”, conceito que não faço ideia de como será interpretado pelos juízes chilenos. Apreciei o “direito à cosmovisão”, talvez posto lá por uma minoria “filosófica”. A palavra direito/direitos aparece 422 vezes. Recorde mundial, entre todas as constituições do planeta, segundo o Comparative Constitutions Project.
Os economistas, com sua mania xarope de perguntar sobre o custo das coisas, foram estragar a festa. Disseram que o novo texto iria custar entre 9% e 14% do PIB chileno. The Economist chamou o projeto de “lista fantasiosa e fiscalmente irresponsável da esquerda”, vocacionada a dar marcha a ré no progresso que o Chile conquistou ao longo das últimas quatro décadas. O Chile é o primeiro colocado, na América Latina, em virtualmente todos os indicadores relevantes. Melhor IDH, maior PIB per capita, melhor educação, medida pelo Pisa, menores taxas de pobreza e mortalidade infantil. Tudo culpa do “modelo neoliberal”, que, segundo se lê por aí, era urgente que fosse posto abaixo no país.
“Há tensão entre a minoria ativista e a maioria dos homens comuns”
Muita gente achou paradoxal que as pessoas tenham apoiado, em 2020, a realização do processo constituinte, e no frigir dos ovos tenham votado contra o texto final. Não há paradoxo nenhum. No primeiro referendo, facultativo, votaram 50% dos eleitores; no segundo, obrigatório, foram 86%. “A maioria silenciosa entrou em campo”, me diz um colega chileno, e “muitos eleitores imaginavam corrigir falhas da atual Constituição, não colocar o edifício inteiro abaixo. “Houve também uma interpretação equivocada sobre o significado dos protestos de 2019”, ele diz. Não houve uma revolução, e tampouco havia ali algum programa de mudanças minimamente estruturado. Havia um descontentamento difuso, conduzido por grupos muito à esquerda do pensamento médio da sociedade chilena. Seu resultado mais objetivo foi o impulso dado à eleição de Gabriel Boric. Me lembrei das lições de Hannah Arendt: a guerra de libertação é sempre mais fácil do que a construção da liberdade. Daí sua admiração pela moderação e o senso prático dos revolucionários americanos, e seu ceticismo com a eloquência vazia dos revolucionários franceses.
De minha parte, lembrei dos protestos de rua do Brasil em 2013. Há traço comum aí das democracias atuais. O súbito aparecimento do “quinto poder”, feito da multidão aglutinada via redes digitais, ao estilo flashmob. Manuel Castells radiografou isso com precisão, observando que se tratam, em regra, de movimentos desordenados, nascidos de algum “gatilho” (como foi o aumento do metrô, no Chile) com um apelo difuso à “dignidade”, e efêmeros. Diferentemente do que ocorreu no Brasil, o “estalido social” chileno foi violento. Trinta mortes e vandalização generalizada de bens públicos. E que aprovou um processo constituinte, que abriu a caixa de pandora e resultou no texto agora rechaçado.
O engraçado é ler algumas explicações. De uma analista, leio que a população não “compreendeu” o significado da nova Carta, e a culpa seria das fake news sobre a relativização dos direitos à propriedade, abertura das fronteiras aos imigrantes e coisas do tipo. É curioso. Parecemos imaginar que a ignorância anda sempre do “outro lado”. Em uma manifestação do “Aprovo”, o grupo Las Indetectables realizou uma performance extraindo uma bandeira chilena do ânus de um performer, representando o que seria o “aborto do velho Chile”. Tudo avançado demais para “essa gente” entender. Vai aí uma marca das democracias atuais: a tensão permanente entre a minoria ativista e a maioria formada pelos homens comuns. O conservador, o “gado”, que não entende, que gosta de música ruim, piadas de mau gosto, usa as palavras erradas e não reconhece os avanços do progressismo.
O que ninguém admite é que as pessoas possam ter votado “não” porque acharam o projeto ruim, e é assim nas democracias. Uma democracia não é boa apenas quando ganham as posições progressistas, mas também quando ganha o outro lado. Difícil entender? Outro ponto é fazer distinção entre o que é matéria constitucional e o que é matéria de política pública. A Constituição trata das regras do jogo. Direitos fundamentais, organização da República e temas de grande consenso. Liberdade de expressão é matéria constitucional; lutar contra a mudança climática (como se lê no projeto chileno) é política pública. Temas de política pública são transitórios, sujeitos a consensos provisórios, numa sociedade aberta. Nossa Constituição é um exemplo dessa confusão. Por que consideramos que é matéria constitucional proteger a Zona Franca de Manaus? Ou que determinada categoria profissional tenha um piso salarial, diferentemente das demais, igualmente dignas? Um colega cáustico me definiu o problema: põe isso lá quem tem lobby no Congresso, e isso vale para piso, benefícios fiscais ou aposentadorias especiais. Temos uma Constituição marcada a ferro pelo lobby no mundo político. Não deveria ser assim.
É esta a lição chilena. Que nenhum grupo em particular, nenhuma minoria ideológica, deve pretender fixar as regras do jogo em uma sociedade plural. Que as constituições demandam consensos amplos e limitados, e servem fundamentalmente para proteger a liberdade e a igualdade de todos diante da lei. Aqueles direitos elementares que, de geração em geração, forjaram o melhor do mundo moderno, e dos quais não deveríamos abrir mão.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806