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Por Fernando Schüler
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A sociedade dos militantes

As redes sociais de fato deram voz aos sábios de mesa de bar. Mas a internet é só uma ferramenta. O problema está no coração humano, e vem de longe

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 20 ago 2022, 08h00

Os militantes estão em toda parte. O chato do WhatsApp talvez seja o pior de todos. O pessoal cria um grupo para trocar ideias sobre a escola, e lá está ele, todo santo dia, mandando figurinhas contra ou a favor do Bolsonaro. Tem o xarope do Twitter, cuspindo suas pequenas frases de efeito, dia e noite. A vantagem desse é que se pode bloquear, e o sujeito some do mapa. Há muitos outros. Um deles é o militante da faculdade. O vereador Fernando Holiday foi impedido de falar, aos gritos e pontapés, na Unicamp, em um episódio constrangedor. As universidades são públicas, mas o militante acha isso conversa fiada. Seu mundo é Star Wars. Forças do bem contra forças do mal. É um mundo divertido, não há dúvida, ainda que possa soar um tanto ridículo, visto a certa distância.

O problema é o militante fora do lugar. Ele ainda não invadiu as reuniões de condomínio, mas o mesmo não se pode dizer das empresas e agências de publicidade. E da Netflix, claro. Estes dias vi uma lista de “séries que você pode ver sem um sermão a cada episódio”. Guardei. Outro espaço colonizado é a imprensa, mas não toda. A existência de uma mídia profissional, fiel aos fatos e imparcial, é elemento essencial para a qualidade do debate público. É espaço de confiança, onde pessoas e grupos com visões antagônicas podem buscar informação, e com isso formar uma base comum de fatos e razões para lidar com a realidade. Isto tudo vai pelo ralo com o jornalismo militante, no qual a opinião pende sempre para o mesmo lado, e o noticiário vem misturado com a adjetivação, perdendo-se a distinção elementar entre fato e interpretação.

Qual é exatamente o tamanho e o lugar que ocupam os militantes na democracia atual? Qualquer resposta será imprecisa, mas alguns indicativos existem. Um deles vem do projeto “Hidden Tribes”, uma ampla pesquisa feita nos EUA sobre as “tribos esquecidas” da sociedade atual. A pesquisa identificou sete grandes grupos na política americana, dos mais radicais à esquerda e à direita, passando pelos liberais moderados, conservadores tradicionais etc. O pulo do gato foi identificar o que os autores chamaram de “maioria exausta”. É o amplo segmento composto das pessoas sem engajamento político (26% da população), e os segmentos moderados de cada lado. Na amostragem americana, ela abrange 67% das pessoas. Formam o que chamamos de maioria silenciosa, mas confesso não gostar do conceito. São pessoas que usualmente exprimem suas visões. Apenas recusam a estridência. E tendem a ser mais flexíveis ideologicamente. Estão dispostas a ponderar e intuem que a política é feita de ajustes de parte a parte. Em geral, são pessoas cansadas do tipo de debate polarizado e se sentem pouco representadas.

“A internet é só uma ferramenta. O problema está no coração humano”

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O ponto central é o cruzamento das fronteiras ideológicas. A imensa maioria (87%), por exemplo, se opõe ao uso de raça como critério de admissão em faculdades; ao mesmo tempo, a maior parte apoia o casamento entre pessoas do mesmo sexo (64%) e aceita com naturalidade pessoas transgênero (66%). Vai aí um dos traços definidores do militante: a recusa da complexidade. É evidente que há temas em que a ideia de complexidade não se aplica. A violência é um deles. Se a Rússia invade a Ucrânia, não há que se falar em “culpa de um lado, culpa do outro”. Mas a maioria das questões da vida pública não é assim. Há prós e contras no desenho do Auxílio Brasil, na redução do ICMS, na legislação do Simples, e em quase todos os temas no Congresso. Vale o mesmo para a avaliação dos governos. Governos erram e acertam, para desespero do militante típico. Na sua cabeça bicolor, isso é impensável. Escrever que o governo andou bem quando reduziu impostos, fez o marco do saneamento e a autonomia do Banco Central, e mal na área da educação e da cultura. No Brasil, criou-se uma expressão jocosa, o isentão, que é o tipo capaz de ponderar alguma coisa, e que não por acaso recebe o ódio duplicado dos torcedores fanatizados.

Em que pese amplamente majoritária, na base da sociedade, quem dá o tom do jogo político é a minoria engajada. Na pesquisa do “Hidden Tribes”, esse grupo chega a um terço da sociedade, sendo 14% os efetivamente radicais. Boa parte de nosso debate público ocorre no interior desse universo. E aí temos um problema. Em uma democracia polarizada, como a brasileira, é previsível que as hordas militantes oscilarão entre os que acham que há uma “revolução em curso”, construindo um “novo Brasil”, e os que nos enxergam à beira do “abismo civilizacional”, como costumo ler por aí. Ambas as visões, por óbvio, são expressões da crosta militante. Não raro, o discurso feito sob medida pelos profissionais da opinião, nas redes, canais de YouTube ou na autointitulada “mídia profissional”, que não raro ganham um bom dinheiro jogando mais e mais toxina no debate público. Fazendo crer que falam do Brasil, quando apenas reagem ao quem veem diante do espelho.

Cresci no mundo político escutando aquele poema do Bertolt Brecht dizendo que “o pior analfabeto é o analfabeto político”. Que é da sua ignorância que nascem “a prostituta, o menor abandonado, o assaltante… o político bajulador das empresas nacionais e multinacionais”. A lógica de Brecht era sedutora: quanto mais atenção déssemos à política, mais rápido iríamos “mudar a sociedade”. Isso foi nos anos 1980. Quatro décadas depois, atravessamos o samba. Quem matou a charada foi um jovem cientista político americano, Jason Brennan. O problema, diz ele, é alguém achar que é politizado quando é apenas um hooligan. O tipo que acha que “está tudo errado”, ou que “está tudo perfeito”, que se imagina com “espírito crítico”, mas no fundo não tem capacidade crítica nenhuma. Age apenas como o torcedor apaixonado, cada vez mais especializado em suas próprias opiniões.

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Alguns culpam a internet. As redes sociais de fato deram voz aos sábios de mesa de bar. Mas a internet é só uma ferramenta. O problema está no coração humano, e vem de longe, na história. Sempre me lembro da expressão melancólica de Madame De Staël, no período final da revolução, dizendo que o “espírito de partido” havia tomado conta da França e que era preciso “sabedoria, tempo e moderação” para curar o rastro de ódio deixado pelo terror. No Brasil de hoje não há nenhuma revolução. Nossos problemas são bem mais prosaicos. Fazer o país crescer, assegurar direitos, reduzir a pobreza. Temas sem graça para o militante típico, mas essenciais para a “maioria exausta”, que é quem deve dar as cartas, afinal de contas, em uma grande democracia.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

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Publicado em VEJA de 24 de agosto de 2022, edição nº 2803

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