Assine VEJA por R$2,00/semana
Imagem Blog

Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO

Por Fernando Schüler
Continua após publicidade

A sociedade da vigilância

No momento em que a tecnologia permitiu que nos expressássemos, com liberdade, escolhemos nos dedicar ao controle da vida dos outros

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 7 jan 2023, 08h00
VAIDADE - Espelhos: bisbilhotamos a vida dos outros para sinalizar nossa própria virtude -
VAIDADE - Espelhos: bisbilhotamos a vida dos outros para sinalizar nossa própria virtude – (Christopher Pavloff/EyeEm/Getty Images)

“Qualquer coisa virou um problema”, me disse um colega professor, incomodado com a recomendação de que ele e seus colegas não dessem mais aulas de pé, de modo a não ficarem com os respectivos membros penianos à altura do rosto dos alunos, o que seria “ofensivo”. Não acreditei, mesmo ele jurando ser verdade. Depois de algum tempo, deparei com uma colunista reclamando de Jennifer Lopez por sua beleza “fora da realidade”, para uma mulher de 53. Seria um “desserviço” às “mulheres comuns”. Fiquei imaginando J.Lo caprichando para sair mal nas fotos, só para não despertar a ira de algum lacrador. Comecei a achar que meu colega tem razão. E que há cada vez mais gente topando se submeter aos vigilantes da vida, da beleza ou do sucesso, para não se incomodar. Espero que a J.Lo não faça isso.

Há um lado trivial em tudo isso. Vimos isso agora na posse presidencial. A turma implicando com a roupa de Janja, a cachorra, a caneta de Lula. Até aí tudo bem. Na imensa tagarelice em que se tornou nossa cena pública, não há muito como escapar disso. Há, porém, um segundo degrau, onde atuam nossos problematizadores. A Copa foi o seu paraíso. Li que as dancinhas dos jogadores brasileiros eram um “desrespeito”; que o gesto fálico do goleiro da Argentina, com a taça, era o final perfeito para aquele “torneio testosterônico”. E o Padre Lancellotti dizendo que era uma “vergonha” aquele jantar dos jogadores com direito a um pozinho dourado temperando a carne. “Na minha folga, faço o que bem entender”, disse o Vini Jr. Ele tem razão, mas há uma multidão de gente furiosa que não pensa assim. Gente inclusive com poder de influenciar instituições. E aí entra um terceiro degrau da problematização atual, quando as empresas e organizações, e o próprio Estado, padronizam a vida das pessoas. Um dos casos mais interessantes que li, por estes dias, foi o índex das “palavras nocivas”, da Universidade Stanford, banindo de suas páginas expressões vistas como ofensivas. Não pode mais dizer “imigrante”, assim como, pasmem, usar a palavra “americanos”, pois poderia ofender alguém que não é americano mas vive na América. Depois de nossa longa revolução iluminista, ensaiamos recriar os index prohibitorum em nossas universidades. O limite disso? Ninguém sabe.

Há alguns traços comuns em todo esse dramalhão coletivo. O primeiro é o moralismo. Uma espécie de neopuritanismo tardio, que surpreendentemente toma conta da nossa cultura. Depois da revolução sexual e cultural dos anos 60, cujo epicentro era justamente nos livrar da carolice e dos disciplinamentos mentais produzidos pela religião, parecemos ter dado marcha ré. Outro traço é o vitimismo. Ninguém descreveu melhor essa realidade do que Bradley Campbell e Jason Manning em seu The Rise of the Victimhood Culture. Eles identificam no mundo atual uma passagem da “cultura da dignidade” para a “cultura da vitimização”, cuja tônica é a extrema sensibilidade a qualquer coisa que possa ser tomada como ofensiva, em regra a partir de critérios altamente subjetivos, e com a tendência de sempre recorrer à autoridade (do Estado, da universidade, da empresa) para disciplinar a linguagem e punir os pecadores. Por óbvio, há uma brutal seletividade na definição de quem tem direito a reclamar, que grupos merecem ou não o “respeito”. Mas isso é outra história.

Continua após a publicidade

Nos tornamos uma sociedade de vigilância. Não tanto da vigilância vinda do Estado, mas da multidão. No imenso panóptico coletivo em que nos transformamos, passamos a ocupar uma dupla função: a do vigia, que fica na torre, no alto do panóptico, e a dos prisioneiros, espalhados pelas celas. A motivação para tudo isso é clara: ganhamos visibilidade, em função da tecnologia, e nos tornamos animais retóricos. Bisbilhotamos a vida dos outros para sinalizar nossa própria virtude. Alain de Botton escreveu um livro saboroso sobre o tema, Desejo de Status. Mais do que recompensas materiais, diz ele, o que realmente desejamos é o reconhecimento dos outros. “Não há punição mais demoníaca do que estar em uma sociedade e passar totalmente desapercebido”, diz William James, citado por Botton. Quando li isso, me lembrei de Para Roma, com Amor, do Woody Allen, com a história de Leopoldo, um desconhecido que subitamente se torna famoso. Ele é perseguido por paparazzi, quase não pode sair às ruas, e lá pelas tantas se diz cheio daquele inferno. De uma hora para outra, volta à obscuridade, e aí a coisa se inverte: sua vida se torna insuportável. Em pouco tempo, ele corre pelas ruas, suplicando que as pessoas o reconheçam. Nosso problematizador é um Leopoldo. Ele corre entre os carros, suplicando atenção. Implica com a Jennifer Lopez, com o goleiro da Argentina, com os jogadores da seleção, com tudo que ele acha que pode chamar a atenção. E com isso fazer com que as pessoas digam que sua opinião é relevante, que ele não vai só ficar carregando aquela pedra, montanha acima, como o Sísifo, sem que se deem conta dele.

“O problema é o esnobismo fast food, na enorme diversidade de mídias”

Botton sugere que tudo diz respeito à “insegurança congênita que sentimos em relação a nós mesmos”. E que nos faz “desejar o desejo dos outros”. Bacana isso. Se implicar alguma ação heroica, ou alguma doação à filantropia, para deixar seu nome gravado em alguma plaquinha de agradecimento, me parece ótimo. O problema reside no esnobismo fast food, feito de sinalizações de virtude, na enorme diversidade de mídias que temos à disposição. Conheço uma penca de gente que vive disso. Barack Obama foi cáustico com estas pessoas. “Essa ideia de pureza… de que você está sempre woke”, diz ele, “sugiro que você descarte.” E completa: “O mundo é feito de ambiguidades. Pessoas que fazem coisas boas têm falhas”. Vendo o Obama falar, não parece complicado entender uma coisa dessas. Mas é. O humorista Mauricio Meirelles fez um experimento, dias atrás, no Twitter. Ele postou dois tuítes. Um com a foto de um carro ocupando duas vagas em um estacionamento e o outro sugerindo doações para a Unicef. O tuíte do carro mobilizou a rede, com milhares de xingamentos, num congestionamento poucas vezes visto de sinalizadores de virtude. O pedido de contribuições perdeu de lavada.

Continua após a publicidade

As pessoas preferem mostrar sua “superioridade intelectual”, diz ele, “a fazer algo positivo”. Na prática, fazemos uso do poder da tecnologia, nos esquecendo de um pequeno detalhe: junto com o poder, vem a responsabilidade. É aí que reside o problema. Devagar, vamos escorregando na direção de uma sociedade de vigilância. Nas empresas, na educação, e mesmo nos tribunais. Onde isso vai parar, não sei. É a ironia de nossa época: no momento em que a tecnologia permitiu que nos expressássemos, com liberdade, escolhemos nos dedicar à trivialidade e ao controle da vida dos outros. A pergunta que fica é como cada um de nós pode agir em relação a isso. Penso que foi essa a preocupação de Obama, naquela palestra, mas cada um pode responder a sua maneira, neste ano que apenas se inicia.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Continua após a publicidade

Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 39,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.