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A ponte do Rio das Antas

O que vale: o encontro do altruísmo com o interesse esclarecido

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 3 fev 2024, 08h00

A ponte ruiu em setembro do ano passado. Foi aquela enxurrada no Rio das Antas, e a velha ponte de ferro se foi. A economia de Nova Roma do Sul (RS) dependia daquilo; os governos estadual e federal puseram a nova ponte no orçamento e a solução era esperar que as coisas acontecessem. Só que não. “Quanto é que sai uma nova ponte? Por que a gente mesmo não faz?”, foi a pergunta que surgiu. A partir daí, mobilização que é clássica na colônia italiana, como na colônia alemã, que conheci tão bem, no sul do Brasil. A rifa, o galeto, a contribuição das empresas. No fim das contas, fizeram a ponte. Era para ser feita em 140 dias. Levou 138. Custo de 6 milhões de reais, ponte simples que resolve o problema da comunidade. “Ainda sobrou 1 milhão”, diz o presidente da associação que comandou o processo. “A comunidade agora vai se reunir para ver o que fazer com o dinheiro.”

Quando li sobre isso me lembrei de Tocqueville. De seus relatos sobre o que chamou de “autogoverno em pequena escala”, em sua viagem aos Estados Unidos, no início dos anos 1830. “Os americanos”, diz ele, “associam-­se para tudo e aprendem isso desde crianças”. Associam-se para “fundar escolas, igrejas, difundir livros, construir prisões e hospitais”. Não apenas como uma forma de resolver problemas, mas como um modo ativo de exercício da democracia. Em vez de esperar pelo governo para abrir uma rua ou um centro comunitário, aqueles colonos faziam como fizeram os colonos de Nova Roma. Não um movimento contra o governo, como não foi agora, no Rio Grande, mas um exercício de confiança. Tocqueville provocou ao contar como milhares de americanos haviam se organizado para combater o alcoolismo. “Fosse na França”, disse, “teriam ido exigir que o governo vigiasse as tabernas”. Esperar pelo Estado seria uma espécie de “mania francesa”. No Brasil, somos ambivalentes. No geral, parecemos um caso agudo de mania francesa. Mas há coisas novas acontecendo no país. E vale a pena prestar atenção.

A colônia italiana e alemã têm uma longa tradição de associativismo e cooperativismo. É um traço de “identidade”, como anda na moda dizer hoje em dia. O que surpreendeu, nesse episódio, foi a escala. Uma coisa é criar uma orquestra, ou um museu de arte. Já vi tudo isso muito de perto. Mas uma ponte? Nova Roma tem coisa de 4 000 habitantes. É evidente que há uma enorme capacidade de cooperação ali. “Capital social”, se quisermos uma palavra elegante. Rutger Bregman escreveu um livro instigante, Humanidade: Uma História Otimista do Homem, argumentando que foi exatamente a capacidade de cooperar, de sintonizar as pessoas em torno de fins comuns, que definiu muito do sucesso evolutivo do bicho homem. Nosso “lado abelha”, na expressão de Jonathan Haidt. O exato ponto de encontro entre o altruísmo e o autointeresse esclarecido de cada um. Da velha senhora, que manda um Pix com um pedacinho de sua poupança para pagar uma ponte que em tese caberia ao governo fazer. Que depois desfila em um velho Aero Willys, festa de inauguração. E disso tudo extrai uma secreta felicidade.

Muita gente aproveitou o episódio para criticar o governo. O governador Eduardo Leite explicou que o estado tem um projeto de ponte mais sofisticado, e por isso mais caro. E que por óbvio leva mais tempo para fazer. Ele tem razão. O problema não é deste ou daquele governo, mas da estrutura da máquina pública no Brasil. Vivemos um tipo de paradoxo. Nosso Estado é eficiente para executar um programa de distribuição de renda como o Bolsa Família, ou programa de bolsas em larga escala, como o ProUni. Mas é claramente ineficiente quando a máquina do Estado entra em cena para prestar serviços ou executar alguma coisa. No ranking da The Global Economy, ocupamos o constrangedor 130º lugar em eficácia governamental. O Uruguai está na 41ª posição. Não é por outra razão que quem tem maior renda, no Brasil, há muito aprendeu a contratar escola e plano de saúde no setor privado. E a depender o mínimo possível dos serviços do governo.

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“O que vale: o encontro do altruísmo com o interesse esclarecido”

A notícia interessante é que o país foi desenvolvendo um contraveneno ao Estado burocrático. Em 1995 fizemos a Lei das Concessões. Foi o que permitiu um parque como o das Cataratas do Iguaçu, patrimônio natural da humanidade, ser gerenciado pelo setor privado, com eficiência, e ainda gerar dinheiro para o governo. O modelo custou para engrenar, mas hoje ninguém pensa seriamente que o governo deve administrar um parque como o Ibirapuera, em São Paulo, ou nossos aeroportos. No final dos anos 90 criamos as organizações sociais, na reforma do Estado conduzida por Bresser Pereira, permitindo que associações e fundações privadas gerenciem hospitais, orquestras ou centros de pesquisa em parceria com o governo. E é assim que temos uma Osesp, por exemplo, e quase todos os melhores hospitais públicos do país. Por fim, em 2004, fizemos a lei das PPPs, que permitiu reduzir de vinte para perto de onze meses o tempo de construção das escolas infantis em Belo Horizonte e fazer a gestão de uma instituição de ponta como o Hospital do Subúrbio, em Salvador. Vai aí a grande tendência da administração pública atual: governo focado nas funções estratégicas; setor privado fazendo a execução e a gestão. Seja uma empresa ultraespecializada, seja uma associação comunitária, no interior do Rio Grande do Sul.

É possível pensar isto como um pêndulo. Fizemos uma Constituição estatizante, nos anos 80, mas gradativamente fomos movendo o pêndulo na direção da sociedade. Ainda estamos longe de ser uma “terra de doadores”, como Tocqueville descreveu a América do início do século XIX. Na última edição do World Giving Index, uma das maiores pesquisas globais sobre doações e filantropia, ocupamos a 89ª posição, entre 142 países. Andamos pelo meio do caminho. Durante a pandemia, nosso senso de comunidade cresceu. Acompanhei de perto a doação de mais de 170 milhões de reais para a fábrica de vacinas do Instituto Butantan. A questão é como transformar isso em um padrão. Nos Estados Unidos, é raro encontrar um museu ou universidade que não tenha seu fundo de en­dowment e uma campanha ativa de doações. Os maio­res fundos são das universidades, com Harvard à frente, com seu fundo de mais de 50 bilhões de dólares. Não passa pela cabeça daquelas pessoas imaginar que o governo deva sustentar ou se intrometer na gestão de suas instituições. Por aqui, nossas grandes universidades funcionam como imensas repartições públicas, totalmente dependentes do governo. Daí nossa ambivalência. De um lado, vamos avançando; de outro, fincamos pé no atraso. Em especial na educação. Daí a importância desse pequeno-grande passo dado pela comunidade de Nova Roma, no sul do Brasil. O exemplo desses “colonos”. Dessa gente que trabalha duro e foi à luta, em vez de esperar que alguém lá de cima desse conta de um problema que eles próprios poderiam resolver.

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Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878

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