Tempos atrás participei de um debate sobre a democracia atual e lá pelas tantas me perguntaram: “Quando é que vamos superar essa sensação permanente de ‘crise’?”. A sensação tinha a ver com as coisas que todos sabemos — o radicalismo das redes, a polarização crescente, os novos populismos, um certo elemento caótico e violento, que vai daquela invasão ao Capitólio, por ativistas ligados ao QAnon, até os movimentos de rua que vêm ocupando tantas capitais latino-americanas.
“Não vamos”, respondi à pergunta. O barulho e a instabilidade vieram para ficar. Há muitos sinais nessas direção. “Participação política” foi o traço das democracias que mais cresceu, nos últimos anos, segundo a The Economist Intelligence Unit. Manuel Castells já havia tratado disso alguns anos atrás, mapeando dezenas de movimentos sociais que iam desde a Primavera Árabe até o Occupy Wall Street, em seu Redes de Indignação e Esperança. Movimentos reativos que explodem a partir de um fato dramático, como no caso do Black Lives Matter, e se propagam anarquicamente na velocidade das redes.
É possível identificar essas coisas observando o lado mais comezinho da politica, aqui mesmo no Brasil. Dias atrás lia que Bolsonaro já passou dos 120 pedidos de impeachment. Mais do que a soma de FHC, Dilma e Temer. De uma medida extrema, o impeachment se tornou o feijão com arroz da República. A política assume a lógica da guerra. Isso não era muito diferente, diga-se de passagem, no último governo Dilma, que já iniciou em crise, e assim foi até o impeachment, e no governo Temer, barrando dois processos de investigação, a um alto custo, no Congresso, e vivendo na corda bamba.
Um caminho para entender o fenômeno é observar que vivemos em uma era de excesso. Em duas ou três décadas passamos de alguns milhares para muitos milhões de cidadãos palpitando sobre política, todos os dias. Hoje são algo em torno de 15% a 20% do eleitorado, nos meios digitais. Não passa de ingenuidade imaginar que isto não geraria barulho e a “sensação cotidiana de abismo”, na definição talvez exagerada que ouvi por estes dias.
O aspecto crucial talvez seja o overload de informação. Já nos anos 90, o psicólogo David Lewis cunhou o termo “fadiga informativa”. Soterrados de informação, somos levados a uma “paralisia analítica”. Traço óbvio desse fenômeno é a extrema dificuldade de separar o relevante do irrelevante no debate público. O último bate-boca da Anitta ou do Felipe Neto, a última frase esquisita de Lula ou Bolsonaro. “O que é golden shower?” foi, até hoje, o tuíte presidencial que mais mobilizou as pessoas, desde o início do governo.
Outra marca do debate atual é a imediatidade. Perdeu-se um traço essencial da democracia pré-digital: o tempo das instituições. Tempo em que se esperava o dia seguinte para responder a um artigo no jornal, ao invés de gastar alguns segundos para despejar até 280 toques, no Twitter, ou devolver um vídeo feito com os nervos à flor da pele, no Instagram. Dias atrás passei os olhos num bate-boca desses, entre o governador de São Paulo e o ministro da Saúde, sobre o ritmo da vacinação. Eu me lembrei de Daniel Kahneman e seu “sistema 1”, o lado do nosso cérebro que reage instintivamente, meio sem pensar. No fundo é isso. A pauta da democracia deveria ser dada pela reflexão, pelo sistema 2. Deveríamos dar um tempo e pensar sobre o que estamos dizendo, sobre a veracidade de uma informação, sobre a adequação de uma crítica. Mas o fato é que os instintos vão dando o tom da orquestra na democracia.
“As instituições agora se adaptam à revolução tecnológica”
Ainda outra marca do debate atual é o não esquecimento. Muito já se comparou a internet ao impagável personagem de Borges, Funes, el memorioso. Funes leva uma pancada na cabeça e a partir daí guarda rigorosamente tudo em sua memória. A tal ponto que já não pode mais pensar, porque pensar exige a capacidade de esquecer. Andamos todos como Funes. Há vinte ou trinta anos relembramos aqueles vídeos de Bolsonaro falando em matar “mais uns 30 000”, e Lula dizendo que pelotense é “tudo viado”. No imenso mar do não esquecimento, cuspimos raiva e ressentimento todos os dias. Muita gente diz que isso é bom. Que é preciso saber quem são as pessoas, se pecaram, se merecem ou não o perdão. Cada um pode julgar.
Há um lado positivo nisso tudo. Ainda lembro quando Francis Fukuyama lançou sua tese sobre o “fim da história”, dizendo que finalmente havíamos chegado a certo consenso, no plano das ideias, em torno da democracia liberal como o sistema capaz de expressar o “desejo humano pelo reconhecimento”. O senso de autorrespeito que leva as pessoas a exigir que governos “as tratem como adultos, e não como crianças, e reconheçam sua autonomia como indivíduos livres”. Não é disso, no fundo, que se trata? Não é o desejo de reconhecimento que leva as pessoas a sair às ruas de Santiago e pedir uma nova Constituição? A exigir democracia, na Nicarágua, formar redes e uma infinidade de movimentos, identitários ou conservadores? Elas fazem isso de maneira desordenada e barulhenta? É possível. Alguém tem uma sugestão de como isso poderia ser feito silenciosa e ordenadamente?
Yascha Mounk observou que nosso mundo democrático fez encolher a distância entre “insiders e outsiders”, na política. Isto é tudo muito excitante, mas fez crescer o custo do consenso e da governabilidade das instituições democráticas. Resultado disso tem sido o declínio persistente dos indicadores de confiança dos cidadãos na própria democracia. E aí podemos ter, de fato, um problema.
Não penso que exista uma grande saída para resolver o problema do mal-estar da democracia atual. É preciso “equilibrar o pêndulo”, como um dia me sugeriu Zygmunt Bauman. O pêndulo aqui diz respeito à aceitação do ativismo e da competição de ideias, de um lado, e da estabilidade mínima que o sistema precisa para funcionar, de outro. Não é um equilíbrio fácil. Daí a intuição que me levou a dar aquela resposta arriscada. Nós vivemos um espetacular avanço democrático a partir dos anos 80, e as instituições agora se adaptam ao impacto da revolução tecnológica. Os indivíduos ganharam poder, há muito mais gente no palco, a diversidade de vozes e estilos se tornou para muitos insuportável. Uma opção é imaginar que algum bom ditador (ao estilo do Partido Comunista Chinês, como escutei por estas semanas) possa nos dar uma direção. Não é esse, por óbvio, o caminho. É mergulhados até o pescoço neste mundo nervoso, movido a liberdade, que teremos de conduzir nossa aventura coletiva.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
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Publicado em VEJA de 7 de julho de 2021, edição nº 2745