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A democracia aprendiz

A cada novo embate, no plano das instituições, nos tornamos mais fortes

Por Fernando Schüler Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 25 set 2021, 08h00

Desde o início do atual governo, e mesmo antes, escutamos que nossa democracia está por um fio, que estamos muito perto do abismo, que andamos, a cada duas ou três semanas, na iminência de um “golpe”. Nos últimos tempos tivemos o golpe do general Braga Netto, que teria ameaçado o presidente do Congresso (ambos negaram); o golpe do desfile de tanques, em Brasília, que terminou no impagável fumacê. E, claro, o do 7 de Setembro, com direito a toneladas de anúncios de invasão do Congresso ou de um novo 1964. No dia seguinte, a sensacional explicação: “o golpe fracassou”.

Bom humor à parte, a democracia supõe um estado permanente de atenção. Isso vale especialmente para Bolsonaro, que nunca escondeu seu gosto pelo regime autoritário e sua quase veneração por tipos como o coronel Brilhante Ustra. É razoável supor que se ele pudesse entrar em um túnel do tempo e se transformar no presidente Médici, nos anos 70, ele o faria com gosto.

A questão é que ele não pode. Daí seu repertório de bravatas e ameaças vazias. Não acatar determinações do Supremo, não aceitar eleições sem o voto impresso, e por aí vai. E a mais curiosa, que alguém sugeriu lembrar o velho Getúlio: “Daqui só saio morto”. Na sequência da fanfarronice, os sucessivos recuos. Sendo o último o mais espetacular. A “carta à nação”, explicando seus arroubos como “calor do momento”, dois dias depois daquela fala desastrosa na Avenida Paulista.

O episódio é ilustrativo. O presidente diz algo fora de propósito e é logo enquadrado pela reação das instituições. Formais e informais. A opinião pública, redes e organizações da sociedade, partidos e lideranças no Congresso. E a linha dura: os pronunciamentos dos ministros do STF Luiz Fux e Luís Roberto Barroso — que também preside o TSE —, seguidos pela ação moderadora do ex-presidente Temer.

Tudo isso sinaliza resiliência democrática. E não é de hoje. Nos processos de impeachment de 1992 e 2016 já foi assim. O país vem mostrando, como li tempos atrás de um teórico da “crise da democracia”, que “seu arcabouço institucional é mais robusto do que havíamos imaginado”.

Isso vem do pacto democrático dos anos 1980 e da Constituição. Ela nos legou um modelo disfuncional de gestão pública, mas soube fortalecer instituições de Estado, em especial do mundo jurídico, e consolidou um sistema sofisticado de freios e contrapesos. Nosso modelo de coalizões majoritárias, como enfatiza o cientista político Carlos Pereira, tem se mostrado inclusivo das elites políticas, e nossa Suprema Corte vem atuando como real poder de contenção e moderação do Executivo.

Um dos efeitos da consolidação democrática foi a crescente organização da sociedade civil. Eram poucos os grupos de advocacy, à época da transição. Hoje há um tecido social estruturado, potencializado pelas redes de cidadãos na internet. O país desenvolveu uma tradição de grandes manifestações de rua, em regra pacíficas, desde as manifestações de 2013. Além disso, há um fator essencial: o apoio difuso na sociedade. Pesquisa recente do Datafolha mostrou que 75% das pessoas apoiam a democracia como “melhor forma de governo”. Maior suporte desde o início da série, em 1989.

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“A cada novo ciclo nos tornamos reativos à virada de mesa”

É igualmente interessante observar o retrospecto histórico. Adam Prze­wors­ki afirmou que “nenhuma democracia ruiu em países com renda per capita superior à da Argentina em 1976, com exceção da Tailândia em 2006”. Maior a renda média, maior a chance de sobrevivência democrática, e é fácil concluir que somos diferentes hoje do que éramos em 1964. O argumento mais forte de Przeworski, porém, diz respeito ao processo de “autoinstitucionalização” das democracias. Pesquisando 3 000 processos eleitorais, desde o fim do século XVIII, ele verificou como o sistema democrático reforça a si mesmo. A cada alternância pacífica de poder, vai se consolidando o processo, e as chances de ruína democrática “tendem a zero a partir de seis alternâncias”.

No ano que vem teremos nossa nona eleição desde 1989. Todas pacíficas, feitas com lisura e com direito a passagem de faixa, como manda o figurino. Se Bolsonaro perder e não quiser passar a faixa, como já insinuou, apenas repetirá o que fez o ex-presidente Figueiredo. Sairá pela porta dos fundos. O fato é que fomos internalizando os procedimentos da democracia. Sabemos como fazer. A cada novo ciclo, com dores e dramas, nos tornamos mais reativos a qualquer virada de mesa.

Há outro aspecto a considerar. Jogar “fora das quatro linhas” demandaria o ingresso dos militares em um tipo de aventura autoritária estranha ao que as Forças Armadas vêm construindo. “Os militares não darão apoio a qualquer desvio constitucional”, diz Raul Jungmann, ex-ministro da Defesa. Ele faz uma distinção entre os militares mais antigos, hoje na reserva, talhados na cultura da Guerra Fria, e os militares hoje no comando. Esta nova geração concebe a atividade militar como essencialmente profissional. “A cúpula, as escolas de formação, esses oficiais superiores”, diz Jungmann, “pensam muito mais na profissão e no respeito à democracia”.

É evidente que há riscos. O mundo digital incentiva a radicalização, a guerra cultural envenenou o debate e há os novos populismos eletrônicos. Nossas democracias podem preservar a competitividade eleitoral e ao mesmo tempo andar ladeira abaixo em sua vida institucional. Sintoma disso, no Brasil, foi o uso generalizado, nos últimos tempos, da Lei de Segurança Nacional.

A primeira lição a tirar disso é estar em alerta. Outra é a isenção: a democracia demanda um olhar dirigido a todos os lados do jogo. De nada vale o olhar seletivo. São inaceitáveis as falas do presidente relativizando o respeito às regras do jogo, assim como a censura prévia e as restrições indevidas à liberdade de expressão. Por fim, é preciso senso de proporção: não confundir, à direita ou à esquerda, a divergência quanto a políticas públicas com identificação de riscos à democracia.

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O tema da democracia não deve ser instrumentalizado como arma da guerra política. Seu debate não deve se tornar, ele mesmo, fonte permanente de toxina ideológica obstruindo o debate sereno dos problemas do país. A defesa da democracia supõe fidelidade a princípios, mais do que amor e ódio a essa ou àquela posição. A democracia, por definição, pertence a todos e a ninguém em particular.

O país fará, em 2022, sua nona eleição desde a redemocratização. E fará com lisura, como sempre o fez. Haverá muita retórica, radicalização e distensão. Qualquer um que insinue jogar “fora das quatro linhas” será devidamente enquadrado e, no limite, posto para fora do jogo. Somos um bom exemplo da tese de Przeworski: a cada novo embate, no plano das instituições, nos tornamos mais fortes. Somos uma democracia que aprende. Um modo de viver erguido a duras penas, nos anos 80, cheio de coisas a consertar, mas “uma viagem de qualidade institucional sem volta”, como bem disse o poeta e ex-ministro Ayres Britto.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 29 de setembro de 2021, edição nº 2757

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